terça-feira, 24 de fevereiro de 2009



24 de fevereiro de 2009
N° 15889 - MOACYR SCLIAR


Carnaval & literatura: a difícil combinação

É impossível viver no Brasil e ignorar o Carnaval. Não é preciso fazer parte de escola de samba, não é preciso sequer gostar da folia: não foram poucos os intelectuais e escritores que, mesmo não sendo fãs de Momo, escreveram sobre este verdadeiro fenômeno popular que é o Carnaval brasileiro.

Um fenômeno que os intelectuais quase sempre situam no quadro de um país pobre, triste. Diz o famoso ensaísta Gilberto Amado que o Carnaval “tem o significado de um desafogo na existência árida do brasileiro, que vive sem comodidade, sem dinheiro, sem orgulho, sem heroísmo, sem coisa nenhuma”.

Acrescenta o também ensaísta (e poeta, e romancista) Ribeiro Couto, falecido em 1963: “O Carnaval é a única coisa que consola a gente do calor, da queda do mil-réis, da política, dos programas de salvação pública. E arremata Júlio Camargo, autor de A Arte de Sofismar: “O Carnaval é uma amostra, aqui na Terra, de como será o Inferno no Céu”. Inferno no Céu? Meio paradoxal, e não muito elogioso.

Na ficção a situação não é diferente. O País do Carnaval é o título de um dos primeiros romances de Jorge Amado, que tinha 19 anos quando o escreveu. Não era ainda a época de Ivete Sangalo, de Daniela Mercury, dos trios elétricos, do Olodum, da axé-música; talvez por isso Jorge não se mostre muito entusiasmado com a festa.

O livro conta a história de Paulo Rigger, intelectual educado em Paris, que volta a Salvador e, depois de uma série de desilusões, termina voltando para a Europa e deixando para trás o “país do Carnaval”. Como se pode imaginar as ruminações de Rigger não são muito carnavalescas.

Para ele, o Carnaval é “a vitória do instinto, o reino da carne”. Nos festejos “até os sujeitos que tocavam violão sambavam numa alegria doente de quem só tem três dias de liberdade”. Já o conto A Morte da Porta-Estandarte, de Aníbal Machado, usa o Carnaval como pano de fundo para um drama de ciúme que termina com um assassinato.

O Bebê de Tarlatana Rosa, de João do Rio, é de arrepiar: o protagonista passa o tempo todo caçando uma foliã disfarçada de bebê e, quando consegue arrancar-lhe a máscara, vê que ela tem a face toda deformada. Já Clarice Lispector, em Restos de Carnaval, fala do temor que nela despertavam as máscaras: “Eu tinha medo, um medo que vinha de encontro à minha mais profunda suspeita de que o rosto humano também fosse uma espécie de máscara.”

Já o musical de Vinícius de Moraes Orfeu da Conceição é uma adaptação do mito grego de Orfeu transposto para as favelas cariocas. O espetáculo teve cenários de Oscar Niemeyer e foi transformado em filme (premiado em Cannes) pelo francês Marcel Camus.

A trilha sonora, que inclui o famoso Se todos fossem no mundo iguais a você, é magnífica, mas a história, baseada na mitologia grega, tem tons de tragédia. Orfeu é um condutor de bonde e sambista, comprometido com a bela Mira.

Morando no morro, ele trabalha nos últimos preparativos para o grande desfile das escolas de samba. É quando conhece Eurídice, uma jovem do Interior que chega ao Rio de Janeiro para encontrar-se com uma prima Serafina. Orfeu e Eurídice se apaixonam perdidamente, mas ela morre, deixando Orfeu desesperado.

Ou seja: os escritores têm a capacidade de ver a “face oculta” do Carnaval. Mas quem quer ver faces ocultas (a não ser por máscaras) na terça-feira de Carnaval? Melhor mesmo é ver o desfile. E/ou cair na gandaia.

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