15 de fevereiro de 2009
N° 15880 - Cláudia Laitano
Compartilhe, mas não exagere
Alguns rapazes, vocês sabem, são tarados por pés femininos. Não lembro se os da minha colega eram especialmente bonitos ou não – nem imagino que tipo de energia erótica eles mobilizavam na ala masculina. Mas, diga-se em favor da moça, não era por exibicionismo que ela liberava os calcanhares para a contemplação pública.
Havia, isto sim, uma espécie de manifesto silencioso pela liberdade de expressão, um discurso em defesa da informalidade e contra todo o tipo de convenções sociais – inclusive as do ambiente teoricamente formal de uma universidade. Bem-vindos ao século 21.
Entre os flagrantes de intimidade exposta (e imposta) publicamente, poucos me incomodam tanto quanto a exibição de um pé descalço fora do contexto apropriado – praia, piscina, congressos de podófilos, show da Maria Bethânia...
É uma bronca pessoal, com motivações inconscientes que eu nem me atrevo a investigar, mas talvez tenha lá sua razão de ser - mesmo levando-se em conta que os limites entre a liberdade individual e a falta de noção nem sempre são tão rígidos quanto a distância entre as duas tiras de uma havaiana.
Há pessoas de aparência perfeitamente sensata que apreciam compartilhar com amigos e colegas de trabalho momentos de higiene pessoal que, em princípio, deveriam ficar restritos ao ambiente doméstico: cortam e limpam as unhas, espalitam os dentes, expremem os próprios cravos e os alheios (ninguém nunca está seguro...).
Mais higiênicos, mas não menos expansivos, são os compartilhadores compulsivos de dramas pessoais. Você senta no táxi e antes de dobrar a primeira esquina o motorista já contou que foi traído pela mulher, que ela nem foi visitá-lo quando a mãe morreu, que a danada não presta mas ele ainda é louco por ela...
Você vai buscar um suco no bar e ouve tudo o que nunca quis saber sobre a disfunção erétil do marido da sua colega.
E o pior é que muitas vezes o destino da inconfidência nem mesmo são os seus ouvidos. Tudo não passa de um incidente acústico, um papo de amigas falando com o controle de voz distraidamente ajustado no volume máximo.
(Se as orelhas passam boa parte do tempo ocupadas com celulares e fones de ouvido, fala-se cada vez mais alto e, consequentemente, para mais pessoas em volta. Bem-vindos ao século 21.)
O seriado Friends (1994 – 2004) cunhou um bordão insuperável para designar esse excesso de compartilhamento de informações, às vezes cabeludas, não solicitadas: “Share not skare” (em uma tradução muito livre, algo como “compartilhe, mas não exagere”).
Mas como saber se o que para nós é natural e faz parte do nosso direito à liberdade de expressão não está ferindo o direito da outra pessoa de não ver os nossos pés, não ouvir nossos problemas, não acompanhar a exterminação dos nossos cravos?
Não há fórmula infalível para lidar com esse tipo de dilema existencial. Mas, em caso de dúvida, sempre é bom dar uma checada no ambiente antes de invadir o espaço alheio com os nossos dedões em riste.
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