sábado, 28 de fevereiro de 2009



28 de fevereiro de 2009
N° 15893 - CLÁUDIA LAITANO

Burn, burn, burn

Em uma cena clássica do filme Frankenstein (1931), uma multidão enfurecida caminha com tochas na mão em direção ao esconderijo do monstro – interpretado nesta versão por Boris Karloff – gritando “Burn, burn, burn” (queime).

A cena, que virou uma espécie de clichê de filmes de terror nas décadas seguintes, é uma das ilustrações mais eloquentes da força maligna que pode tomar conta de uma aglomeração de pessoas quando elas se deixam embalar pela raiva coletiva – sem que cada uma se dê ao trabalho de pensar individualmente antes de adotar a posição da maioria. Frankenstein era feio, grandalhão e esquisito. Uma criança apareceu morta.

Alguém pensou que era óbvio quem era o assassino. Daí para a fogueira era questão de marchar alguns passos e gritar uma única palavra de ordem: “Queime”. Pelo menos nesta versão da história de Mary Shelley, o monstro de parafusos no pescoço e testa larga morre tão inocente quanto perplexo.

Multidões ensandecidas não foram inventadas ontem, mas o fato de que atualmente milhões de pessoas estão conectadas nas mesmas fontes de notícias (e boatos) ao mesmo tempo criou um imenso potencial de “burn, burn, burn”. Antes que alguém pare para perguntar se alguma testemunha viu Frankenstein esganando a menina já existe uma comunidade no Orkut propondo que ele seja torrado vivo o quanto antes em praça pública.

A reviravolta no caso da brasileira que disse ter sido atacada por skinheads na Suíça mostrou um curioso bailado da multidão rumo a uma condenação em bloco antes que os fatos tivessem sido devidamente analisados.

Primeiro, seguindo a versão inicial de Paula Oliveira e atacando a polícia suíça. Depois, condenando a advogada sem saber as exatas circunstâncias do caso. O curioso é que nem mesmo as idas e vindas do triste episódio são capazes de acender a luz vermelha da ponderação. Quando a manada estoura para um lado, não é fácil ficar parado ou seguir o rumo contrário.

Multidões em ação podem proporcionar cenas de profunda emoção. Um Maracanã lotado cantando o Hino Nacional é capaz de comover até um turista chinês. O Carnaval de Recife e Olinda, que eu conheci este ano, revela-se muito mais grandioso e surpreendente quando você vê de perto os rostos das pessoas que, na televisão, são apenas cabecinhas aglomeradas no meio da avenida.

A multidão encanta quando a causa que une seus integrantes multiplica a alegria, a festa, o sentido de cidadania ou cumpre a função de reivindicar direitos que, exigidos individualmente, talvez não tivessem a mesma força e visibilidade. Mas a turba também se engana e às vezes toma para si funções que não são suas, mas da Justiça – que também erra, mas pelo menos é obrigada a cumprir certos rituais que, quando tudo dá certo, desembocam em uma análise mais racional dos fatos.

Uma bela frase do poeta inglês John Donne, do século 16, inspirou o romance Por Quem os Sinos Dobram, de Hemingway: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti”.

Em tempos de informação rápida demais, globalizada demais – e às vezes analisada de menos – é cada vez mais importante aprender a não pensar como manada. Exatamente para não abrirmos mão do que nos torna parte do gênero humano, e não ilhas.

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