sábado, 2 de novembro de 2019



02 DE NOVEMBRO DE 2019
DIÁRIOS DO MUNDO

Onde o Estado Islâmico fala português

O mais novo front do terrorismo internacional está localizado em um país de língua portuguesa. No recente boletim Al-Naba, espécie de newsletter produzida pelo grupo Estado Islâmico (EI), os extremistas anunciaram sua presença no nordeste de Moçambique, na fronteira com a Tanzânia. Conflitos na região, província de Cabo Delgado, são frequentes, mas até agora não havia indícios de integrantes da organização de Abu Bakr al-Baghdadi, morto no fim de semana na Síria.

Há anos, grupos radicais islâmicos atuam na região. Um deles se autodenomina Ansar al-Sunna (Defensores da Tradição), designação adotada também por sunitas que lutaram contra tropas americanas no Iraque entre 2003 e 2007. Na África, a organização seria composta por moçambicanos dos distritos de Mocímboa da Praia, Palma e Macomia, e estrangeiros de Somália e Tanzânia - este último, alvo de um atentado reivindicado pela rede Al-Qaeda contra a embaixada americana, em 1998, na capital Dar es Salaam.

Na região, o EI reivindica um "Califado da África Central". Desde outubro de 2017, pelo menos 250 pessoas morreram nos confrontos. Em maio, uma ação dos guerrilheiros chamou a atenção pela crueldade e modus operandi semelhante ao usado por jihadistas no Oriente Médio: 10 corpos decapitados foram encontrados no vilarejo de Monjane.

A intenção do EI seria estabelecer um califado em Moçambique. Os alvos geralmente são vilarejos remotos. Os ataques são realizados na maioria das vezes com machados, mas há relatos de tiroteios e do uso de explosivos.

O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, tem colocado a organização à disposição de Moçambique - se a situação piorar, não seria absurdo cogitar-se a proposta de uma força de paz na região. Entre 1992 e 1994, a entidade manteve capacetes azuis no país - com participação do Brasil - para monitorar o cessar-fogo entre grupos rivais após a guerra.

A região nordeste da nação, onde atuam os extremistas, virou palco recente do interesse de empresas que atuam em jazidas de gás descobertas na última década. Moçambique é um país de maioria católica (56%) com importante comunidade muçulmana (18%). O radicalismo islâmico não tinha raízes no local, mas, nos últimos anos, líderes muçulmanos de Cabo Delgado alertaram para a chegada de radicais, seguidores do extremista queniano Aboud Rogo Mohammed, morto em 2012.

“É uma tentativa de criar desordem”
ENTREVISTA: EURICO RASSUDE, Funcionário público de Moçambique

Direto de Lichinga, no norte de Moçambique, Eurico Rassude (foto), funcionário da autoridade tributária do governo, conversou com a coluna, por telefone, sobre a possível presença do Estado Islâmico (EI) no país. Ele afirma que não há evidências, mas acredita que a região, por ser rica em minérios, pode estar sendo foco de desestabilização por interesses externos. Rasssude é doutorando do projeto de pós-graduação em Estudos Estratégicos Internacionais da UFRGS na nação africana. A seguir, trechos da conversa.

O Estado Islâmico está reivindicando presença em Moçambique. O que as pessoas falam sobre essa ameaça ao país?

Não me parece uma mensagem muito verídica. Visito a fronteira Tanzânia-Moçambique frequentemente por causa do trabalho. Não há evidências do Estado Islâmico nessa zona. Em termos de religião, a região é dominada pelo Islã, embora tenha-se forte presença cristã. Do lado da Tanzânia, a maior parte da população também professa o islamismo. Temos forte relação com a Tanzânia. Não haveria espaço para estragar tão linda relação.

Quem estaria por trás desses ataques, decapitações, então?

Não associaria isso ao EI. Moçambique é um Estado laico, de muita abertura, acolhe a maior parte dos grupos religiosos. É um país com várias religiões, embora as fés islâmica e cristã sejam dominantes. Até agora, não tínhamos registros de conflitos de origem religiosa. Para mim, é difícil associar esses ataques que estão acontecendo à religião islâmica. Esses grupos podem estar usando a forma de se vestir dos islâmicos, porque sabem que, do ponto de vista internacional, muitos dos terroristas têm determinado comportamento. Seria uma tentativa de manchar a religião islâmica.

Qual seria o interesse?

Há hipótese de descontentamento político. Por conta disso, pode existir algum movimento que procure ajuda e intervenção externa.

Ajuda externa com dinheiro ou envio de tropas?

O país é muito estável, embora em um ou outro ponto, surjam movimentos que tentam desestabilizá-lo. Historicamente, temos registros de movimentos nacionais apoiados por forças externas para tentar destruir a força que está no poder. Provavelmente, esteja acontecendo isso. Desde a independência até as recentes eleições, o governo esteve nas mãos de um único partido (Frente de Libertação de Moçambique, Frelimo). Pode ser que um ou outro grupo não esteja satisfeito com essa realidade e, uma vez que não tenha apoio interno, provavelmente esteja recorrendo a apoio externo para lutar contra o regime. A região que está sendo vítima dos ataques é muito rica em recursos naturais. Em uma área com essas características, há muitos interesses nacionais e internacionais. Os focos de ataques nesse momento, provavelmente, estão ligados a uma tentativa de criar desordem para exploração ilegal de recursos. A história já mostrou que zonas assim foram problemáticas. Grandes potências estão lá para explorar commodities e todo tipo de insumos para alimentar suas indústrias. Do ponto de vista da segurança, Moçambique, junto da região da SADC (Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral), da qual a Tanzânia também faz parte, está muito preocupado e trabalhando para identificar quem são esses grupos. Até agora, essas organizações não esclarecem seus objetivos. Acredito que a dificuldade de identificá-los pode estar associada à mão invisível externa, que manipula grupos nacionais e, para mascarar a realidade, pode estar utilizando essa capa de grupo islâmico. Mas, na verdade, em Moçambique nunca tivemos conflitos de ordem religiosa.

Quando o senhor fala de um ator externo, seriam os EUA? Historicamente, a Rússia tem relação próxima com o governo de Moçambique.

Não há evidências. Mesmo a Rússia, a amizade entre países é aparente. Existe amizade, cooperação, mas, no fundo, os países desconfiam uns dos outros. Em última instância, vão prevalecer os interesses dos Estados. Não posso afirmar que é a Rússia ou os EUA porque ainda precisamos de dados para sustentar essa ideia. Mas existe a possibilidade do que chamamos de tentativa de intromissão externa devido ao fato de a região ser um poço de recursos. 

A SEMANA QUE EU VI

PERONISTAS NA CASA ROSADA 

A semana começou com os peronistas voltando ao poder na Argentina. Alberto Fernández e a ex-presidente Cristina Kirchner (foto) venceram Mauricio Macri no primeiro turno, no domingo. As relações começaram tensas entre o eleito e o presidente Jair Bolsonaro, que não irá à posse. No Uruguai, a disputa ficou para segundo turno, entre Daniel Martínez e Luis Lacalle Pou, no dia 24.

POPULAÇÃO NAS RUAS

No Chile, os protestos levaram o governo a cancelar a conferência do clima, que ocorreria em Santiago. Na segunda-feira, uma passeata acabou em incêndio em um shopping da capital. Há revoltas também no Líbano.

MORTE DE TERRORISTA

O presidente Donald Trump obteve um triunfo político, com a morte do líder do Estado Islâmico, Abu Bakr al-Baghdadi, durante ataque americano na Síria. Na quinta-feira, a organização confirmou a perda e nomeou novo comandante, Abu Ibrahim al-Hashimi al-Quraishi.

IMPEACHMENT AVANÇA NOS EUA

Na quinta-feira, veio o revés para Trump. Democratas na Câmara dos Deputados conseguiram votos suficientes para aprovar uma legislação que estabelece as próximas etapas do processo de impeachment e permite audiências públicas.

RODRIGO LOPES

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