23 DE NOVEMBRO DE 2019
FRANCISCO MARSHALL
EXPURGOS NA UFRGS
Dante Alighieri é o patrono não apenas da língua italiana, mas também do humanismo moderno; ele, que percorreu cenários místicos do cristianismo, inferno e purgatório, guiado não por santo ou profeta, mas por poeta pagão, Virgílio, que o levou às portas do paraíso, em que o aguardava não uma deusa casta, mas sim a mão de uma Beatriz amada e desejada.
Aquele mesmo Dante julgou pequena a lista dos pecados que enquadravam os cristãos medievais e acrescentou às razões da danação eterna um rol de cacoetes capaz de assombrar a sociedade em que vivia quando publicou A Divina Comédia, no início do século XIV. Nos círculos mais profundos do inferno, o oitavo e o nono, o vate pôs os piores tipos, os que fraudaram e mentiram e assim causaram a ruína dos seus; é lá que padecem merecidos tormentos aqueles que mais ofenderam à honra e à virtude.
É nas fundas fossas do inferno que o poeta cristão pôs os canalhas de seu tempo, e é lá que mesmo um prosador ateu quer ver arder os que violaram os códigos preciosos da dignidade. A obra de Dante, poema ético, canta a esperança de que um dia serão punidas as violações desonrosas, e nos anima a realizar na História o que na fantasia religiosa pode ser improvável, o juízo que alcança erros indesculpáveis e faz ver a força do tempo e da memória. Eis a chance de redimir, com consciência justa, a profanação que jamais deveria ter ocorrido. É o que a sociedade faz ao restaurar a evidência de abusos e violências e cobrar, afinal, a reparação da honra e da vida feridas por erros que não merecem o perdão oportunista do esquecimento.
Estamos falando, aqui, da memória e da História de regimes que usurparam os poderes do Estado e impuseram a força como critério, uma força cômoda e cinicamente obtida com recursos da sociedade contra a qual se voltam os ditadores, em sua sede incontida de poder e movidos pela vil obsessão de querer aniquilar a quem pensa diferentemente.
As ditaduras não alcançam seus fins sórdidos sem que as ampare um conjunto de cumplicidades, que vão do silêncio omisso dos alienados aos agentes da repressão brutal e, com eles, à colaboração de alcaguetes, as sombras sem caráter daqueles que com menos honra ainda abusam das instituições e do Estado. O dedo-duro é o personagem caricatural que deixa claro que aquele mundo de falsidade política é o cenário em que se movem os que não possuem nenhum caráter, mas querem inflar-se como paladinos, ungidos por carinhos dados por um padrinho de mão de ferro e alma podre.
As sociedades civilizadas, ao se erguerem do pesadelo das ditaduras, olham para o passado de violências inaceitáveis e dão a elas o devido lugar em julgamentos e monumentos, cenários em que o direito e a arte praticam e simbolizam o reparo necessário. Eis o que ora faz a UFRGS, ao inaugurar, em 28 de novembro de 2019, monumento aos expurgos da ditadura, obra de Irineu Garcia, de gravidade dantesca. Haverá, então e sempre, em torno da bela escultura em pedra, uma ciranda de forças que não se renderão jamais na defesa da liberdade, do direito e da democracia.
FRANCISCO MARSHALL - Historiador, arqueólogo e professor da UFRGS | marshall@ufrgs.br
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