sábado, 30 de novembro de 2019



30 DE NOVEMBRO DE 2019
CLAUDIA TAJES

Terapia de vidas passadas

Há alguns dias comecei a praticar regressão. Não é bem o que parece, voltar no tempo para me descobrir uma escrava da Cleópatra ou a ajudante de quarto da Rainha Vitória. Nada disso. É que estou arrumando as fotografias antigas e, de olhar para elas, viajo para outras épocas, algumas das quais não tenho lembrança alguma. Mas as fotos estão ali, desmentindo o meu esquecimento.

Com horas de nascida, enrolada como uma pequena múmia, mas não parente da Cleópatra. Minha mãe estreante me olhando daquele jeito como as fêmeas de todas as espécies olham para seus filhotes. Estranho a foto manter seu preto e branco, deveria estar sépia já, tantas décadas depois. O que será que aquela nenê sentia, será que sonhava ou que só dormia? Em outra foto, eu um pouco maior com inexplicáveis cabelos loiros. Poderia ser filha do leiteiro - piada politicamente incorreta e historicamente incompreensível, já que há muito os leiteiros desapareceram do cotidiano das famílias. Eu mesma, para ser sincera, nunca vi um.

A irmã que nasceu com um intervalo de apenas 11 meses, nós duas sempre com roupas iguais, só a cor diferente. Eu de azul, ela de vermelho. Virei gremista - como meu pai. Ela, colorada. Se não foi cármico, foi o leiteiro. Embora eu já tenha uns três anos nas fotos, não lembro do que a gente brincava, dos passeios, das brigas. Não demora, minha irmã caçula começa a figurar nas imagens. É uma bebê gorducha, olhos redondos. São muitas as fotos da mãe com a gente. Se não me visse nelas, diria que nunca estive naquele apartamento.

Fotos na casa dos avós com as primos, os primas, os tios, as tias. Não chega a ser lembrança, é mais uma sensação de coisas acontecidas. Como na vez em que a vó matou uma galinha na nossa frente para o almoço do domingo. Nós, as crianças, comemos chorando, mas comemos. Não tinha essa de escolher o cardápio. O tio mais moço tocando bateria, meu irmão bebê já incorporado, de colo em colo nas fotos. O batizado dele, o padrinho e a madrinha na estampa dos anos 1970, os dois com grandes óculos de sol que assustariam o afilhado, não estivesse ele ferrado no sono. Fui, mas não lembro.

Sete de Setembro, marchando na ala dos mais baixinhos do colégio. Pobres alunos, tomara que esse desfile não seja mais obrigatório. Concorrendo a Mais Bela da Escola, os cabelos falsamente cacheados, uma tragédia estética. Fiquei em último lugar. Chuchi e Nara, as melhores amigas. Algumas professoras de diferentes colégios. Troquei muito de colégio, disso eu lembro bem, a repetida sensação do primeiro dia de aula e o desconsolo de começar tudo outra vez.

Minha adolescência não ficou registrada, odiava fotos e aposto que proibi os flashes. Era chata de doer. Então o tempo dá um salto e me vejo em outra vida, com o namorado que importou em casas desconhecidas e praias desabitadas. Aquela na turma da Geologia, de bornal e tudo, sou eu? Mais uma vez, não me reconheço.

Meio sem perceber, o trabalho substituiu a família. É onde eu mais fico, onde mais me divirto, onde começo a ganhar um dinheirinho que vai melhorando à medida em que a vida avança. Grana para as compras que antes não podia fazer, para viajar. Queria que as meninas e os meninos que começam uma de suas vidas agora tivessem essa oportunidade também. Nunca é fácil, mas parece que nunca foi tão difícil.

A partir do nascimento do meu filho, lembro de tudo. Só quase não dá para acreditar que ele já tenha sido tão pequeno. Talvez a gente documente a vida dos filhos assim, quase que minuto a minuto, para ter a impressão de que acontece tudo de novo a cada vez que se mexe nas fotos antigas.

A arrumação vai chegando ao fim e a regressão, também. Pai e mãe não aparecem mais nas fotos, ficou só a falta ocupando o lugar dos dois. Surgem personagens novos, as sobrinhas e o sobrinho, amigas e amigos, o namorado e a família dele. Quantas vidas mais todos nós teremos antes de tudo acabar, é um mistério. Que nunca nos faltem selfies, nem fôlego, para nenhuma delas.

CLAUDIA TAJES

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