sábado, 16 de novembro de 2019



16 DE NOVEMBRO DE 2019
MÔNICA SALGADO

Casa de vó

Só tem um lugar no mundo mais delicioso do que nossa própria casa: casa de vó. Nossa própria casa pode até saber de quem somos hoje, mas casa de vó sabe de quem fomos ontem, e nós sabemos que o hoje não seria o hoje sem o ontem. Sem aquele tombo que me rendeu uma "janelinha" de anos na boca, sem aquele Natal em que descobri que o tio Paulo era o Papai Noel, sem aquela gemada com vinho do Porto, aquele primo distante que foi o primeiro amor, aquele "meinho" quentinho e protetor da cama, entre a vó e o vô, o clima festivo e permissivo que (viva a redundância!) permitia que a gente fizesse quase tudo... Sem todas as anteriores, como eu poderia ser esta que vos escreve?

Tenho sorte: tive quatro avós maravilhosos. Nino e Nice do lado paterno. João e Neide do materno. Presentes, importantes, aconchegantes, dínamos de amor. Tenho muita sorte: vovó Neide segue aqui neste plano, 91 anos, saúde boa apesar do Alzheimer que lamentavelmente a retirou de algumas atividades corriqueiras. 

A avó mais avó que se pode imaginar. Me ensinou a cozinhar (eu só quis aprender os doces), a tricotar (produzi toscos, porém bem-intencionados, cachecóis para a família), a servir (a ironia disso tudo é que ela é a única que está entre nós, como se vivendo sua merecedora fase de ser servida por todos aqueles a quem se doou). Mais do que tudo: vovó Neide me ensinou, do seu jeitinho, a ver poesia em todas as lições acima. Poesia no café com leite vespertino pro vovô, no frango assado pra família aos domingos, no arroz de amêndoas de tantos Natais... Ela cuidava sobretudo cozinhando. Era o seu "eu te amo".

Vó Neide viveu uma vida à moda antiga. Não se rebelou contra o status quo. Não foi exatamente visionária. Não lutou contra as convenções. Seu valor maior está naquilo que é, na sua essência que traz paz, no seu colo morninho e macio, no seu cheiro suave de canela, nos dedos gordinhos que fazem carinho. Na sua casa que é, para nós, templo.

E ela mora, até hoje, no mesmo lugar. A casa da vó Neide é um Xangri-lá. Tem aroma de especiarias, temperatura amena (25º C, curiosamente não importando a estação do ano), o conforto emocional dos móveis no mesmo lugar de sempre, a história da família nos porta-retratos, os vizinhos que nos viram crescer.

Por ali, coisas mágicas acontecem. O sofá, por exemplo, tem sonífero. Sentou, deitou, dormiu. O tempo passa mais devagar. Os sapatos se recusam a ficar nos pés. A água do velho filtro de barro bateria qualquer Evian da vida. Na cristaleira, sua famosa coleção de "bibelôs" se mantém estranhamente intacta, imune a quatro bisnetos bisbilhoteiros que já até armaram por ali uma partida de pebolim - fazendo de jogadores peças de presépios antigos, galinhas d?Angola compradas em Porto de Galinhas e objetos de murano adquiridos naquele cruzeiro pela Itália com o vovô. Milagre: nenhuma baixa entre os bibelôs! E não conto nem sob tortura de qual bisneto estou falando, cof, cof. cof.

Tem mágica, muita mágica. Mas também uma tristeza ou outra. Nem Xangri-lá escapa dos ciclos da vida. De uns anos pra cá, as especialidades gastronômicas da Dona Neide foram ganhando ora muito sal, ora nenhum açúcar, às vezes forno demais, às vezes forno de menos. Maldito Alzheimer. No início, fingíamos que nada notávamos. "Que delícia, vó, a senhora cada vez melhor, hein?". Porém, o perigo iminente a que ela estava exposta bem ali, no seu cômodo preferido da casa, nos fez abrir os olhos. Detalhe: vovó jura que prepara todos os almoços em família e fica ofendida quando encomendamos fora a ceia de Natal. Bendito Alzheimer.

Na garagem/quintal, os brinquedos que já foram dos netos se misturam aos dos bisnetos. Relíquias como um Pogobol autêntico já foram encontradas onde antes ficava o Escort azul. Carro já não se faz necessário. Melhor que o portão sirva de gol pros meninos jogarem. Desde que eles não quebrem o vidro, né, vó? O quê? Quebraram de novo? Não, vó, a senhora confundiu. Já consertamos, está tudo perfeito. Agora descansa. Quer um chazinho de camomila pra chamar o sono? Não saio daqui até a senhora adormecer. Te amo, vó. Mãe, qual é mesmo o contato do vidraceiro? Zzzzz....

MÔNICA SALGADO

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