quinta-feira, 14 de novembro de 2019



14 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

Não sou eu homem e um irmão?

No começo do século 19, os abolicionistas ingleses usavam um medalhão que ostentava, no fundo, em relevo, a figura de um negro acorrentado, tendo gravada em seu entorno a seguinte frase:

"Não sou eu homem e um irmão?".

Era um questionamento de esmagador peso filosófico. Em resumo, atirava ao colo do cristão devoto uma brutal contradição: como podia um povo que professava a religião do amor escravizar outros povos? Jesus não dizia que somos todos iguais e que devemos amar uns aos outros?

As intensas campanhas abolicionistas conseguiram criar, entre os britânicos, um sentimento de repulsa à escravidão, levando, por fim, ao seu banimento.

Houve quem suspeitasse de que a escravidão já não garantia mais tantos lucros ao império britânico, mas não era assim. A abolição aconteceu APESAR dos grandes lucros assegurados pelo sistema.

Você, que é um cínico materialista, não vai acreditar, mas os ingleses passaram a repelir a escravatura por não suportarem sua incongruência religiosa e moral. Foi a filosofia que venceu, não a economia.

O cristianismo teve e tem esse papel civilizatório no Ocidente. Mesmo que crimes tenham sido cometidos em seu nome, o cerne ideológico do cristianismo sempre foi o amor e a igualdade. Se há ódio e desigualdade, em algum momento a contradição explode.

Mas o que os cristãos escravocratas faziam para lidar com sua consciência?

Eles a enganavam.

Como?

Vou mostrar.

Em 26 de janeiro de 1753, um comerciante de escravos chamado John Newton escreveu da África uma carta para sua mulher na Inglaterra. Newton era um carola. Era pastor anglicano e havia composto um hino religioso bastante conhecido, o Amazig Grace. Em sua carta, ele dizia o seguinte:

"As três maiores bênçãos de que a natureza humana é capaz são, sem dúvida, religião, liberdade e amor. Como Deus me honrou com cada uma delas! Aqui há nações inteiras à minha volta cujas línguas são totalmente diferentes umas das outras, mas acredito que todas concordam nisso de que não têm palavras que expressem essas ideias atraentes. De onde infiro que as ideias em si não têm lugar na mente deles. E como não há meio-termo entre a luz e a escuridão, essas pobres criaturas não só são estranhas às vantagens que usufruo, como estão mergulhadas em todos os males contrários".

Nessa passagem você compreende a justificativa que o traficante de escravos dava para si mesmo: os homens escravizados não sentiam o mesmo que ele. Não eram capazes de usufruir "as bênçãos da natureza humana". Ou seja, eram menos do que humanos.

Mesmo com todos os argumentos de autoconvencimento, Newton não suportou a incoerência entre seus atos e suas crenças e acabou se tornando um abolicionista entusiasta. Antes, porém, ele fez grande mal a seus semelhantes.

É por isso que o preconceito racial contra os negros é o mais abjeto de todos. É pior do que qualquer preconceito de gênero ou de orientação sexual ou de classe ou mesmo em relação a outros tipos humanos. Porque o homem negro era considerado sub-humano apenas por causa da cor da sua pele. Era essa a desculpa dos escravocratas: eles estavam capturando, prendendo, seviciando e submetendo um ser que se situava pouco acima do animal irracional e pouco abaixo do racional.

Quando, portanto, um jogador de futebol protesta ao ouvir insultos racistas vindos da torcida, como fez Taison dias atrás, ele não está protestando por igualdade; está protestando por humanidade. E não é só ele que deve protestar. Não são só os descendentes de africanos. Também os descendentes de europeus, de asiáticos e de indígenas, também as pessoas de quaisquer origens e de qualquer cor devem gritar. Porque a verdade é uma só e estava impressa naquele medalhão há mais de 200 anos: somos todos homens, somos todos irmãos.

DAVID COIMBRA

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