16 DE NOVEMBRO DE 2019
JJ CAMARGO
A DESCONFIANÇA
SE A QUESTÃO FOR DINHEIRO, É BOM FICAR DE OLHO, BEM ABERTO, PARA QUEM NOS CONHECE MAIS, POIS ESSES SABEM, COMO NINGUÉM, NOS FAZER SOFRER
Se considerarmos que somos jogados no mundo, sem nenhuma noção de que inimigos vamos enfrentar nem de que armas precisaremos, a vida será sempre um exercício assustador de tentativa e erro.
E como desembarcamos sem um manual de instruções para cada situação, interagindo com pessoas sempre tão diferentes, não há a possibilidade de que se estabeleça uma estratégia de defesa, e fica muito claro que o máximo que podemos fazer é tentar não repetir os erros, na expectativa generosa de que a maturidade nos encontre sábios e serenos.
Uma fantasia precoce na vida moderna é de que seria muito bom se tivéssemos alguém com quem compartilhar nossas dúvidas ou, idealmente, alguém para copiar. Sem ombros e sem modelos, nosso viver assume ares de um videogame em que estamos eternamente tentando desviar de inimigos impiedosos e traiçoeiros, as vezes reais, em outras imaginários.
Sem airbags emocionais confiáveis, saímos de casa todos os dias, de peito aberto ao que o mundo ofereça, de melhor ou pior, e sem aviso prévio.
Os otimistas considerarão que este é o lado mais excitante da vida, enquanto os pessimistas se consagrarão ao verem que tudo o que previram como desastre desastrou.
O nosso "modelo de fábrica" original traz a desconfiança como único e precário recurso de proteção, e, sem saber como utilizá-la, incorremos com frequência no exagero de desconfiar de todos, e é certo que não precisamos chegar a esse extremo, porque não é tão raro assim que encontremos pessoas genuinamente boas.
É certo que, se confiarmos muito, algumas vezes nos quebraremos, mas os que desconfiam sempre se tornam amargos pela escassez de reciprocidade de afeto, e essa é matriz da mesquinhez.
Quem tem tempo de ouvir as histórias ricas que brotam nos ambulatórios pobres descobre formas ainda mais deprimentes de mau-caratismo, como aquele que, sem a barreira da desconfiança, prospera na boa fé.
Conheci a Marialva quando a operei no final dos anos 1990. Na época, ela era classe média, mas morava em casa própria, com o marido aposentado, e tinha um plano de saúde. Recentemente, quase não a reconheci ao entrar na minha sala, trazida pela secretária com o alerta de que precisava muito me ver, mas não era uma consulta.
- Viuvei há quatro anos e, uns tempos depois, minha irmã pediu que acolhesse meu sobrinho que arranjara um emprego na Capital - ela contou. - Sempre oferecido para me ajudar, foi tomando o controle das minhas contas, e no ano passado descobri que ia ser despejada se não vendesse a casa para pagar as dívidas, que nem entendi ainda de onde brotaram. Agora só tenho SUS e moro de favor com uma prima, em troca de cozinhar e limpar a casa. Às vezes penso que foi bom ter ficado sozinha. Se o Anselmo ainda estivesse vivo, eu teria morrido de vergonha dele. Agora estou aqui para ver se o senhor me consegue umas amostras grátis de antibiótico. Qualquer antibiótico!
Desconfiar de quem não conhecemos parece mais ou menos espontâneo, mas se a questão for dinheiro, talvez seja recomendável desconfiar também, e muito, de quem nos conhece mais, pois esses sabem, como ninguém, nos fazer sofrer.
JJ CAMARGO
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