23 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
A professora ruim e a professora boa
Houve, nos meus primeiros anos de colégio, uma professora que não foi boa e uma que foi ótima. Ironicamente e, sobretudo, injustamente, lembro só do nome da que não foi boa e esqueci o da ótima.
Mas é claro que não irei denunciar a não boa, só contarei que ela errou comigo. Porque já gostava de escrever, escrevia bastante e a professora, em vez de me estimular, vivia repetindo:
- Tu tens que escrever menos. Menos, menos! Que texto comprido! Falava tanto isso, que quase enjoei de escrever. Mas fui teimoso, e até hoje ganho a vida escrevendo. Toma, professora-que-não-foi-boa!
Já a outra, a ótima, da qual não recordo o nome, ela dava aulas encantadoras. Trazia textos para a classe e os interpretava junto conosco. Até hoje recordo do dia em que ela destrinchou o Hino Nacional frase a frase, mostrando como as orações às vezes eram invertidas e o sentido que havia em cada uma delas. Então, quer dizer que as margens plácidas do Ipiranga é que ouviram o brado retumbante de um povo heroico? Era isso? Que coisa maravilhosa!
Noutra vez, ela nos apresentou O Navio Negreiro, de Castro Alves, e conseguiu nos fazer compreender que o poema balançava como se estivesse sobre as ondas procelosas de alto-mar. E ela contava o que significava cada verso e descrevia o padecimento daquelas pessoas que tinham sido arrancadas de suas famílias e agora eram levadas sob ferros para um lugar desconhecido, onde seriam tratadas feito bichos.
Saí da aula impressionado com o Navio Negreiro, imaginando as cenas descritas com tanto vigor por Castro Alves:
"Era um sonho dantesco... o tombadilho. Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar. Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...".
A partir daquele dia, passei a me interessar pela história da escravidão no Brasil. O problema é que não conhecia muitos livros acerca do tema e, bem, não contávamos com as bênçãos da internet, esse poço sem fundo de conhecimentos e ressentimentos. Então, ia aprendendo devagar.
Uns cinco ou seis anos depois dessa aula da professora ótima, ouvi O Mestre-Sala dos Mares, de Aldir Blanc e João Bosco. Essa música é um clássico da MPB, é muito bonita. Foi gravada por Elis Regina. Teve a letra mutilada pela censura do regime militar, mas o que sobrou dava pistas do tema tratado. Já na época não foi difícil descobrir que o mestre-sala dos mares era o gaúcho João Cândido, que, entre 22 e 26 de novembro de 1910, liderou a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro.
Estamos diante de uma efeméride, portanto, e por isso escrevo hoje a respeito. Tenho muito a dizer sobre João Cândido, um herói do Brasil, mas, neste momento, queria fisgar um naco da música de João Bosco. É o comecinho, que diz assim:
"Há muito tempo, nas águas da Guanabara,
O Dragão do Mar reapareceu
Na figura de um bravo marinheiro
A quem a História não esqueceu".
Ao ouvir esse verso, voltaram-me à mente as aulas da professora ótima e quis desenlear a letra. Quem era o Dragão do Mar que havia reaparecido na pele de João Cândido nas águas da Guanabara?
Pesquisei. E deparei com uma figura luminosa da história brasileira, um cearense chamado Chico da Matilde, mulato, descendente de escravos, que comandava os jangadeiros de Fortaleza. Pois em meados do século 19, quando a escravidão ainda ardia na pele do Brasil, Chico da Matilde recusou-se a levar escravos em suas jangadas e jurou:
- Ninguém mais vai transportar carne humana no Ceará!
Graças a ele, e a outros abolicionistas, evidentemente, o Ceará foi o primeiro Estado brasileiro a abolir a escravidão. Por conta dessa façanha, Chico da Matilde tornou-se famoso, seu nome era respeitado até na capital, o Rio de Janeiro, e foi assim que passaram a chamá-lo de "Dragão do Mar".
Que belo título, "Dragão do Mar"!
É um radiante pedaço da história do Brasil, algo para nos orgulhar. Sim, sim, também temos do que nos orgulhar!
DAVID COIMBRA
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