quarta-feira, 13 de novembro de 2019



13 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

O preço do pecado

Uma vez, uma amiga minha, que estava amando e em retribuição era amada, me disse algo que jamais esqueci. - Tenho medo de que alguma coisa muito ruim me aconteça por estar tão feliz.

Parece um raciocínio tortuoso. Não é. Porque é essa a lógica da civilização. As pessoas pensam que a felicidade tem de ser merecida e que o merecimento só se obtém com sacrifício.

Eis a palavra-chave para compreender a alma atormentada do ser humano: sacrifício. Se você está feliz agora, é porque se sacrificou antes. Mas, se está feliz sem ter se sacrificado, talvez tenha de pagar por isso depois. Era o que temia a minha amiga. "No pain no gain", como pregam as academias de ginástica. Sem dor, não há ganho.

É por essa razão que o sacrifício está no centro de todas as religiões. Do patriarca das três grandes religiões monoteístas, Abraão, Jeová teria exigido o maior de todos os sacrifícios: a imolação de seu filho, Isaac.

Essa história mostra como eram comuns os sacrifícios humanos na Antiguidade. Afinal, o que pode ser mais valioso do que a vida de uma pessoa?

O judaísmo aboliu os sacrifícios humanos. Foi uma evolução. Mas animais continuaram sendo imolados até 70 d.C., quando os romanos destruíram Jerusalém e os hebreus se espalharam pelo mundo.

O cristianismo representou outra evolução: os animais não eram mais abatidos, porque o próprio Jesus se sacrificou pela salvação do homem. Ele era "o cordeiro de Deus", que morreu para lavar os nossos pecados.

Em vida, Jesus também teria condenado a execução dos animais. Os vendilhões do templo, que ele expulsou a chicotadas, sabe o que eles vendiam? Bois, ovelhas e pombas para o sacrifício. Tratava-se de um grande negócio. Os mais pobres compravam uma pequena pomba. Os remediados, uma ovelha. Os muito ricos e muito pecadores às vezes patrocinavam uma hecatombe: matavam cem bois. Havia muito dinheiro envolvido em toda essa devoção. Não foi por outro motivo que os sacerdotes se irritaram tanto com aquela pregação pacifista de Jesus.

Apesar desses progressos civilizatórios, a ideia de que a felicidade tem preço está gravada na nossa mente e infiltrada no nosso espírito. Se alguém é feliz, certamente limpou seus pecados por meio do sacrifício.

É um tema extenso, mas hoje quero me deter na América Latina, que passa por imensos sacrifícios.

Chico Buarque diz que "não existe pecado do lado de baixo do Equador". A frase não é dele. Foi tirada de Raízes do Brasil, livro escrito por seu pai, o grande Sérgio Buarque de Holanda, que, por sua vez, a tomou de outro autor, ainda mais antigo.

Pai e filho tinham interpretações opostas a respeito da frase. Para o filho, o fato de não haver pecado ao sul do Equador é positivo, a vida é uma festa, urru!, ninguém é de ninguém. Para o pai, era algo negativo, porque assim se comportavam os europeus, quando desciam para o Sul: como se não existisse pecado. Tudo valia, para se ganhar o que se queria: o assassinato, o estupro, o roubo, o logro. A América Latina, então, teria sido construída sobre o pecado.

Tudo indica que o pai estava certo. Porque toda essa dor, todo esse sacrifício latino-americano tem uma fonte: o pecado que foi cometido. A cobiça dos homens, sua ganância irrefreável e, principalmente, sua sede por dinheiro e poder forjaram este pedaço tão belo e triste do planeta. Existe, portanto, pecado ao sul do Equador. E estamos pagando por ele.

DAVID COIMBRA

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