30 DE NOVEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
O gorro perfeito
Comprei o chapéu de Shackleton. Um gorro, na verdade, mas não um qualquer. Estou falando do gorro perfeito.
Acontece que sinto muito frio nas orelhas. Será normal isso? A investigar. De qualquer forma, o fato é que, ao dormir, tenho de tapar as orelhas mesmo no verão, e aqui, no inverno feroz do Norte, não posso sair sem que a cabeça esteja coberta.
Dia desses, porém, saí desprevenido. Culpa da Marcinha. Ainda estava em casa, quando ela chegou da rua, livrando-se do casaco com alguma urgência e anunciando: - Está quente! Se estiver saindo, vai sem touca!
Eu estava saindo, e já empunhava a minha brava touca de lã, mas, como a Marcinha se punha a repetir que estava quente para fins de novembro, que fazia 11 graus e luzia o sol, saí a descoberto.
Que arrependimento. Em poucos minutos, a temperatura despencou e um vento gelado veio uivando do Canadá. Foi aí que pensei em Shackleton. Ernest Shackleton foi um explorador inglês que liderou uma das maiores aventuras da história da humanidade. Só é possível acreditar no que ele fez porque existem documentos e testemunhos a respeito.
Foi o seguinte: quando a Primeira Guerra Mundial estava ainda no seu início, Shackleton decidiu que atravessaria a Antártica a pé. Conseguiu patrocinadores generosos, um navio robusto e até o apoio de Churchill para o empreendimento. Em seguida, passou para a fase de contratação da tripulação.
Essa parte deveria ser estudada por diretores de empresas mundo afora (Alô, Andiara! Alô, Toigo! Alô, Zuckerberg!), porque foi fundamental para o sucesso de Shackleton. E foi surpreendente. Porque Shackleton dava menos importância aos conhecimentos técnicos de seus contratados e muito mais à personalidade de cada um. Ele dispensava currículos bem fornidos, se o candidato demonstrasse possuir bom humor e bom caráter.
Finalmente, partiu com seu navio, o Endurance, que significa resistência, palavra bastante apropriada para aquela expedição. Porque, depois de alguns meses, o navio acabou preso por grandes banquisas de gelo que foram pressionando o casco até afundá-lo. Os tripulantes conseguiram escapar no último momento e, com três pequenos botes, rumaram para uma ilhota congelada. Estavam em uma situação desesperadora, no meio do gelo infinito da Antártica, com alimento escasso, a cerca de 1,5 mil quilômetros de distância de quaisquer outros seres humanos. O horror, o horror. O tempo ia passando, passou-se mais de um ano, e não havia sinal de salvação.
Enquanto isso, Shackleton esforçava-se para manter os ânimos do grupo elevados. Inventava jogos e celebrações, conversava com os homens, alentava-os. Finalmente, resolveu sair com um grupo e arriscar a travessia até a ilha da Geórgia do Sul, onde sabia que poderia encontrar socorro. Depois de quase um mês enfrentando tempestades e inclusive um furacão, ele chegou à ilha. Mas, no lado em que bateu, não havia ninguém. Teria de atravessá-la, percorrendo 50 quilômetros de terreno montanhoso, sem trilhas, sem referências, sem nada que o guiasse. E conseguiu!
Por fim, Shackleton tentou por três vezes buscar os companheiros que havia deixado para trás, mas o gelo o impedia de navegar. Na última tentativa, teve sorte. Todos foram salvos. Com sua liderança e inteligência, Shackleton os manteve unidos e confiantes por DOIS ANOS no frio extremo da Antártica. Sua façanha é uma das grandes realizações da vontade humana.
Eu, no lugar deles, só resistiria se tivesse densa proteção para as minhas orelhas. Era no que pensava naquele dia de frio, em Boston. Sentia-me um Shackleton, avançando contra os ventos gelados sem touca ou chapéu.¶
Então, vi algo que, para mim, pareceu aquela pequena ilha onde os marinheiros se homiziaram: uma Target, que é uma loja que tem de tudo, de hortifrútis a TV de plasma. Entrei e, logo no primeiro andar, vi um chapéu exatamente como o de Shackleton, com abas compridas, próprias para proteger orelhas sensíveis como as minhas.
- É muita coincidência! É um sinal! - exclamei, chamando a atenção dos outros clientes.
Comprei o chapéu por US$ 19 e o acoplei à cabeça. Era quente e aconchegante. Olhei-me no espelho: parecia um aventureiro. Sim, senhor! Satisfeito, segui o meu caminho, como os marinheiros ingleses rumo à Geórgia do Sul. Estava contente, debaixo do meu gorro perfeito. Depois de horas, cheguei feliz em casa. A Marcinha estava na sala. Ao me ver, gritou:
- Mas que coisa horrorosa é essa na tua cabeça?!?
Aquilo doeu. Mas toquei para o quarto, de queixo erguido, pisando firme, enquanto ela gargalhava no sofá. Que se ria. Viver uma vida de aventuras não é para qualquer um.
DAVID COIMBRA
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