segunda-feira, 11 de novembro de 2013


11 de novembro de 2013 | N° 17611
LIBERATO VIEIRA DA CUNHA

Mulheres sós

Por hábito, cruzo todos os dias a Praça da Matriz. Pois não é que ultimamente vejo, sentada em um banco que fica ao sul do playground, uma moça que lê um volume infinito? Já me perguntei se será o Livro de Ester, com os adendos publicados na Itália antes de Gutenberg, o Códice da Demanda do Santo Graal, o Guia Telefônico de Londres. Jamais saberei. Sei apenas que é uma moça muito bonita e só.

Estava esses dias pesquisando sobre coisas antigas de Cachoeira quando topei com a foto de um café. Era igual à foto de todos os cafés da época, salvo pelo fato de que, em meio a dezenas de cavalheiros de trajes escuros, ali estava ela, com seu vestido branco, desafiando todas as convenções presentes e ausentes: uma mulher jovem. Ali estava, tão bela, tão só, dizendo à sociedade estabelecida: eu sou mais eu.

Visitei uma vez longamente, muito mais do que jamais ousarão supor todos os guias e roteiros turísticos, a cidade de Pompeia. Ali pelo segundo mês – fixando de novo o olhar naquela enorme vitrine em que se guardam os surpreendidos pelo fogo e pela danação, os últimos seres de um lugar condenado à eterna voragem das idades –, notei uma menina abandonada e só.

Devo aqui dizer que não era bem uma menina. Pelas formas de seu corpo, dava para adivinhar que era uma adolescente pronta para a vida. Dava para entender também que era linda: isso se depreendia de seus traços, de suas curvas, de seu inteiro jeito ou modo. De jeito ou modo que ali fiquei contemplando-a, em sua intransponível lindeza, em seu indevassável mistério, em seu intraduzível encanto. E então me perguntei por que ela se abraçava a si mesma com aquele gesto: seus braços enlaçavam seu corpo como numa despedida.

Estava ela posta em sossego, como Inês de Castro, quando a surpreendeu a tragédia? Um rio rubro de lava desceu pela encosta do Vesúvio e engoliu o universo em fogo e desolação e a cingiu num abraço de chama?

Me indaguei mais: ela não teria olhado algum dia o vulcão do alto da Torre de Mercúrio e pensado que ele dormiria pela possível eternidade de sua vida? Teria ela frequentado o anfiteatro, contemplado os atlantes, apreciado a corrida das quadrigas, orado no templo de Apolo?

Nada sei, a vida é sonho. Mas talvez aquela adolescente se dirigisse na hora mesma em que o mundo se cindiu em dor e luz para seu primeiro encontro de amor. E então o Sátiro Dançante decretou que ela seria só, pelos séculos dos séculos.


Eu a vi, assim tão só. Eu tenho visto mulheres sós na Praça da Matriz, em idos cafés de Cachoeira, pelos caminhos do mundo. Eu até acho, e perdoem se isso soar inconveniente, que há demasiadas mulheres belas tão sós.

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