11
de novembro de 2013 | N° 17611
LETICIA
WIERZCHOWSKI
Uma vistoria
Faz
muitos anos, li um romance de um autor francês cujo nome nunca mais consegui
lembrar. Este livro, indicação da Martha Medeiros, conta a história de uma paixão
extraconjugal. O casal em questão, em um certo momento da história, escapa para
o Exterior até o dia fatídico em que a mulher decide voltar para o ex-marido. Cabe
ao homem, que é também o narrador, fazer a vistoria da casa que alugara para
viver este amor.
Assim,
enquanto o funcionário da imobiliária apontava riscos nas paredes e lascas nos
móveis, o narrador evocava os momentos vividos ali com a sua amante: o que para
o corretor era uma marca na parede ou um risco na laca de uma mesa, para o
narrador era a evocação de uma noite especial, de uma briga terrível onde copos
foram quebrados e palavras duras foram ditas, de um passado vivido com amor em
todos os seus altos e baixos.
Nunca
esqueci daquela cena... Recentemente, acabei me colocando na pele daquele
personagem no dia da vistoria do seu imóvel alugado. Porque recebi aqui na
minha casa uma corretora, já que estamos de mudança e decidimos alugar o nosso
apartamento.
E
então, um pouco porque sou romancista e a narrativa não se descola de mim (nem
para o meu próprio bem), alternei-me entre o papel de dona da casa e o de
corretora de imóveis: um tanto, eu olhava cada coisa com os meus olhos amorosos
e cheios de memórias, e então eu já era a moça ao meu lado, enxergando cada
pequeno risco, cada falha no taboão, cada porta que não encaixava perfeitamente.
Eu
via a janela cuja veneziana emperra um pouco ao descer pelo seu velho trilho, e
via também uma tarde quando a veneziana emperrou em pleno temporal, e lembrei
de como rimos e ficamos furiosos ao mesmo tempo, tentando fechar a teimosa
veneziana.
E
vi, nos riscos do taboão, os primeiros passos do meu filho que já se vai para
os 13 anos, e em cada canto, armário e gaveta, as recordações pulavam, lindas,
doloridas e alegres; e eu já não estava mais mostrando o meu apartamento para
outrem, estava revendo minha a vida feliz que vivi entre estas paredes nos últimos
12 anos. Natais, aniversários, as marcas dos carrinhos do meu filho caçula, os
risos e as manhãs, as noites românticas, a cicatriz sob o tapete de um antigo
pipi da nossa cachorrinha que fugiu há dois verões, tudo pulou em cima de mim. Não
sei o que a corretora achou do nosso apartamento.
A
minha casa tem um estado de espírito e também seus defeitos, vincos, riscos e
janelas teimosas. E tive orgulho de tudo isso naquele dia, como teve o
personagem do romance que não consigo esquecer. O fato, meus amigos, é que a
felicidade deixa marcas.
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