sábado, 3 de novembro de 2007



04 de novembro de 2007 |
N° 15408 - Moacyr Scliar


De um diário chileno

Quando as pessoas do povo têm a coragem de reclamar o que de direito, senão de fato, lhes pertence é sinal de que a democracia está vigente

Era uma lacuna no meu currículo: eu não conhecia Santiago. Conheço muitas outras cidades na América Latina, mas não a capital do Chile. Por sorte a Feira do Livro que lá se realiza este ano homenageia o Brasil. Escritores brasileiros (vários gaúchos!) foram convidados, eu entre eles.

Assim, na última segunda-feira, tomei um vôo (que não atrasou) para Santiago. O avião vinha de Florianópolis com muita gente, e em Porto Alegre encheu mais ainda.

A maioria das pessoas desceu em Buenos Aires, onde o avião fez escala, refletindo uma clara preferência de turistas. Explicável: a capital argentina está mais perto, os preços são convenientes, a época das compras está chegando. Mas aqueles que, como eu, continuaram viagem, não se arrependeram.

Cerca de uma hora depois avistamos os picos nevados dos Andes, uma visão arrebatadora. Só ela vale a viagem. E lembra também que a história do Chile foi condicionada por uma situação geográfica caracterizada por um relativo isolamento: a cordilheira, o deserto e a própria posição no extremo sul do continente.

Santiago tem muito em comum com Buenos Aires. Como a capital portenha, é uma cidade européia. Diante de alguns prédios, a gente tem a impressão de estar em Madri ou Paris.

O que se explica pelas fases de prosperidade vividas pelo país e decorrentes da exportação de salitre e cobre. Quando os países latino-americanos tinham dinheiro, imediatamente tratavam de copiar os europeus (e depois os americanos), nos costumes, na moda, na arquitetura, mesmo que essas coisas nada tivessem a ver com nossa realidade.

De qualquer modo, próspero o Chile foi, e é. Uma prosperidade que chama a atenção dos observadores e torna o país um modelo citado pelos economistas, uma espécie de Irlanda da América Latina.

A estabilidade econômica tem, obviamente, conseqüências políticas. Michelle Bachelet se elegeu como uma candidata de esquerda, mas está longe de seguir o modelo Chávez. Nos dias em que estive lá lançou, com certo estardalhaço, uma campanha pública contra a agressão de mulheres.

É uma luta contra a injustiça social, uma luta com objetivos menos amplos do que seria, por exemplo, um programa estatizante, mas mais definida, menos controversa, mais fácil de avaliar. Ou seja: Bachelet faz parte de uma esquerda que podemos chamar de pragmática e que reflete em muito a evolução no mundo pós-comunista.

O Chile tem amargas recordações de um passado ainda recente. Isto a gente constata visitando o Museu Nacional, que, em dois andares, consegue resumir de forma didática (e dramática) a história do país.

Uma história que, como a de outros países da América Latina, teve genocídio indígena, teve exploração de trabalhadores, tudo isso levando a um grande projeto reformista que foi a tônica do governo Salvador Allende e que terminou, como sabemos, em tragédia.

O palácio de La Moneda, sede da presidência, que foi bombardeado e onde Allende se suicidou, foi restaurado e já não há marcas daquele medonho ataque que, por si só, já valeria a condenação de Pinochet.

Mas no museu há algo que nos comove e nos faz pensar. São os óculos de Allende; melhor dizendo, metade dos óculos, o que sobrou do bombardeio. Junto está o depoimento de uma senhora chamada Teresa Silva Jaraquemada, uma mulher obviamente simples, que, movida pela curiosidade, esteve no palácio um dia depois do bombardeio.

Surpreendentemente, o soldado que ali estava de guarda deixou-a entrar; caminhando pelas ruínas, ela encontrou os restos dos óculos e guardou-os. O soldado interpelou-a: aqueles não seriam os óculos do falecido presidente? Não, disse Teresa, estes óculos são meus.

Mentiu, essa chilena? Teoricamente, sim. Mas talvez tivesse agido dessa maneira movida por uma profunda convicção. Allende, eleito democraticamente, era o presidente dela; portanto, os óculos também eram dele.

Quando as pessoas do povo têm a coragem de reclamar o que de direito, senão de fato, lhes pertence é sinal de que a democracia está vigente.

Como está no Chile de hoje.

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