sábado, 17 de novembro de 2007



18 de novembro de 2007
N° 15422 - Luis Fernando Verissimo


Nosso avesso

Por trás de cada ato e cada frase dita há uma engrenagem oculta, e todo mundo é só a ponta visível do seu próprio iceberg

Depois das revelações do chef franco-nova-iorquino Anthony Bourdain no seu livro Kitchen Confidential, publicado há alguns anos, muita gente passou a desconfiar do que comia em restaurantes. Aparentemente, aquele mito de cozinheiros fazendo higiene íntima com a sopa antes de mandá-la para a sua mesa não era mito.

Pelo menos em Nova York, segundo Bourdain, as cozinhas eram versões revisadas do Inferno de Dante que podiam até incluir o Dante comendo a Beatriz enquanto ela mexia o molho. O livro foi um "succès de repugnance" nos Estados Unidos e deve ter contribuído para aumentar a onda de restaurantes com vitrine dando para a cozinha, para mostrar que não há nada a esconder.

O que é uma pena, porque o contraste entre cozinha e salão faz do restaurante uma boa metáfora para a divisão de tudo - inclusive a gente - entre bastidores caóticos e frentes enganosas.

Você e eu também temos a personalidade que aparece e os seus fundos, e quem vê nossa cara (que é o nosso avesso, como escreveu a Clarice Lispector) nem sempre adivinha a confusão que tem lá atrás.

Os pratos voando, o xingamento, a fumaça. Por trás de cada ato e cada frase dita há uma engrenagem oculta, e todo mundo é só a ponta visível do seu próprio iceberg, cuja extensão pouco varia, seja você intelectual ou manicure.

A cara que apresentamos aos outros é como o prato que chega bem montado na mesa, sem vestígio do turbilhão em que se originou. Se os outros vão aceitá-lo ou mandá-lo de volta à cozinha é outra história.

Você não gostaria de saber o que há por trás desta crônica, por exemplo. Seus bastidores não são nada atraentes. Minha aflição com o prazo de entrega, a sonolência porque ontem não dormi muito bem, todos estes livros empilhados que não consigo arrumar, o que dirá ler, desde o século passado, a velhice chegando, o gás acabando, o Internacional desse jeito... Não interessa.

A crônica tem que sair na hora certa, com a coerência possível. Não dá nem para acrescentar uma nota de pé de página, explicando as circunstâncias de um mau texto e pedindo a indulgência do leitor. Vale o que aparece, sem desculpas. Esse iceberg só tem ponta.

Uma peça de teatro ou um filme também são como o salão de um restaurante, o resultado apresentável de uma retaguarda cuja complexidade e desorganização nem se imagina. A cozinha com vitrine equivale à incorporação dos bastidores à peça, a todo filme ter junto o seu making of e ao turbilhão interior de cada um estar na cara.

O que não é totalmente ruim. Existe um certo prazer estético em conhecer o outro lado, como o avesso de uma tapeçaria em que se vê o mesmo desenho da frente mas com as costuras e as sobras de linha à mostra - e que muitas vezes tem mais caráter do que o lado certo. Caráter, afinal, é isso: costuras e sobras de linha aparecendo. Inclusive as nossas.

Mas prefira não enxergar a cozinha. Não importa o que o cozinheiro esteja fazendo com a sopa.

Romântico analfabeto
(Da série "Poesia numa hora destas?!")

E disse o piloto à sua amada
"Eu escreveria seu nome
mil vez no céu com o
rastro do meu jato,
Cecília,
se não fosse tão difícil
fazer o cedilha."

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