sábado, 6 de setembro de 2014


06 de setembro de 2014 | N° 17914
PALAVRA DE MÉDICO | J. J. Camargo

UMA PRAIA E TANTO

Jesse Teixeira, o grande mestre, tinha morrido e uma multidão de amigos e ex-discípulos deixou o Cemitério do Caju condoída pela enorme perda e sensação de que, naquele momento, a cirurgia torácica brasileira encolhia um tanto, amassada pela partida de seu líder mais respeitado.

Era quase meio-dia, e um grupo de cirurgiões decidiu almoçar junto. Era uma chance de rememorar os muitos momentos inesquecíveis de uma lembrança vívida, marcante e carinhosa. A orfandade afetiva, como se sabe, tende a agrupar, pelo maior tempo possível, os assemelhados no desconsolo.

E então fomos ao Bodegão, um conhecido restaurante português, em São Cristóvão. Um dos cirurgiões estava acompanhado do filho mais novo, garoto de uns 10 anos, com uns olhos grandes e luminosos e que acompanhava com interesse, mas em absoluto silêncio, a conversa anárquica dos adultos.

Depois de um bacalhau maravilhoso e muita cerveja, já tínhamos repassado histórias imperdíveis do mestre e, não lembro por qual motivação, estávamos a falar das nossas praias preferidas, e cada um tinha a sua. Foi quando um cirurgião de Niterói, natural do Espírito Santo, descreveu as maravilhas de uma praia linda, pequena, bucólica, perdida no litoral capixaba, com menos de um quilômetro de extensão, demarcada por duas pedras enormes, que lhe desenhavam os limites e lhe garantiam uma relativa privacidade:

“Adoro passar o dia lá, recostado na minha cadeira, tomando a cerveja mais gelada e comendo os petiscos que os nativos vão retirando do mar e servindo aos visitantes. Mas o espetáculo maior é o final da tarde. O sol descendo no mar é de uma beleza indescritível”.

Quando todos, com aquela tendência à solidariedade que caracteriza a borracheira, já se imaginavam naquela fábula paradisíaca, o tal garoto, provavelmente premido por longas horas de silêncio, decidiu intervir: “Tem alguma coisa errada com essa sua praia, porque só no Pacífico o sol desce no mar!”.

Pronto. Estava criado o impasse, não apenas geográfico, mas de quebra de hierarquia. Vendo o desespero do meu amigo, agravado pelo risinho debochado dos seus colegas, resolvi socorrê-lo: “Duas coisas, garoto: primeiro, não tens nada que te meter em conversa de gente grande. Segundo, tens de aprender que um adulto que passa o dia inteiro tomando cerveja numa praia deserta tem o direito, ao final da tarde, de colocar o pôr do sol onde bem entender!”.

Restabelecida a ordem das coisas, rimos muito, sublimando um pouco da tristeza daquele dia, e nos despedimos. Dezesseis anos depois, entrevistava os candidatos à residência em cirurgia torácica no nosso serviço, quando um dos candidatos entrou, apresentou suas credenciais e, antes de sentar, anunciou: “Meu pai só pediu que eu lhe dissesse que sou aquele garoto que se negou a aceitar que o sol descesse no Atlântico!”.


A parte da entrevista parecia resolvida. O brilho do olho seguia inalterado. Restava agora torcer para que a prova escrita não desmentisse a velocidade mental daquele pirralho insolente.

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