quarta-feira, 7 de março de 2012



07 de março de 2012 | N° 17001
JOSÉ PEDRO GOULART


Aqueles olhos verdes

1 - Encontrei o corpo inerte, sem vida mas ainda quente, um corpo cuja cabeça coroada mostrava um traço de majestade de quem vinha de um reinado particular. O assassino? Um vidro.

2 - Eu disse que ela tinha olhos (verdes) lindos. Ela sorriu, mas não corou, apesar da pele branca Omo dupla ação. Estranhei. Uma face corada depois de um elogio é como rir de um sujeito que resvala numa casca de banana, difícil de evitar. Depois, só depois, é que um amigo que estava junto, e ouviu o que eu havia dito, revelou o mistério: lente de contato.

3 - O filme iraniano A Separação não é só genial pelas interpretações hiper-realistas, ou pelo enredo comovente, ou pelas reviravoltas do roteiro. Isso tudo já seria suficiente para o Oscar que ele ganhou. É genial porque não se perde em abstrações, tão comuns em filmes que abordam o tema, ao contrário, desconcerta, uma por uma, a lógica ocidental sobre amor, família, Estado e liberdade.

É também um filme sobre convicções e como as circunstâncias que a toda hora mudam testam essas convicções, afinal não é difícil ser justo, difícil é ser justo contra os próprios interesses.

4 - O pica-pau confiou nas suas asas e na capacidade de impulsioná-las, contou com a visão limpa que achava que tinha pela frente e principalmente, acima de tudo, com a convicção de que poderia voar. Mas não contou com a traição. Aquele era um vidro traiçoeiro.

Um vidro frio, duro, intransponível e acima de tudo transparente: fatal, seja para reis ou súditos. Na perplexidade, o tumulto. Talvez o pica-pau tenha tido menos dor depois do choque do que surpresa.

Toda traição é uma surpresa, e toda traição é um golpe na ilusão. Tivesse sobrevivido à batida mesmo assim aquele passarinho nunca mais conseguiria voar da mesma forma. Ao invés, voaria com medo, sestroso. Voar sem medo é só para os iludidos.

5 - Enquanto o conflito de convicções se desenrola no filme iraniano, a filha do casal vigia impotente, como normalmente as crianças fazem nessas situações. A menina participa do teatro proposto quase como uma marionete.

A casa, a família, a vida, tudo parece ruir da maneira mais inverossímil. Ao mesmo tempo, ela conta com a ilusão de que as coisas ainda têm jeito, a qualquer momento tudo irá voltar ao que era. A perda da ilusão, no entanto, é uma questão de tempo, há que se tomar decisões.

E há que se entender que as decisões significam perdas, como todo adulto sabe. Mas ela é uma menina. Ou era. As lágrimas anunciam a traição; parte do jogo perdeu o sentido, a partir de agora ela vai ter que lidar com as regras de um jogo diferente.

6 - Não resisti, passou um dia e perguntei para a moça dos olhos verdes, “É lente?”. Ela sorriu, agora sim um pouco embaraçada com minha demasia, e disse: “É”. Perguntei por que ela não havia me dito antes.

Ela disse que eu havia elogiado os olhos dela, não perguntado se era verdade que eram verdes e claros. Resolvida, ela continuou de maneira simples, simpática, dizendo que um pouco de ilusão não fazia mal, que se uma mulher maquia os lábios para que parecessem maiores, ou encomprida os cílios, ou tinge o cabelo, por que não haveria de trocar a cor dos olhos?

Concordei, mas a essa altura já um pouco desinteressado na conversa. Tinha que lidar com minha decepção, e com aquela pequena traição. E afinal queria saber qual era a verdade por baixo daquelas lentes verdes claras. De modo que insisti. Ela olhou para mim, suspirou e respondeu: “A verdade é um pouco mais escura.”

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