quinta-feira, 16 de janeiro de 2025


16 de Janeiro de 2025
CARPINEJAR

Desvalorização

Fui estacionar meu carro na Tobias da Silva, no Moinhos de Vento. Lá é difícil localizar uma vaga. Costumo dar três voltas em imenso balão até a Associação Leopoldina Juvenil para encontrar uma redentora brecha. Ponho na conta 30 minutos circulando à toa.

Mas, naquele afortunado dia, um flanelinha, ostentando sua camiseta colorada como bandeira, acenou para mim:- Vem! E era bem na frente do restaurante em que eu queria almoçar. Fiquei até sem jeito com a sorte, por acertar a loteria do cotidiano. Tirei da carteira uma nota azul de R$ 2 e agradeci ao guardador o fato de ter me reservado aquela vaga.

O guardador pirou comigo. Flexionava os braços e as pernas em sinal de reverência. Só faltou estender um tapete vermelho com a sua camiseta. Ou me carregar no colo para atravessar a rua.

Ao receber a gorjeta, abriu um riso do tamanho da ponte móvel do Guaíba. Pulava eufórico, dizia "obrigado" sem parar, falava de modo desenfreado, afirmava que rezaria pela minha família:

- Que Deus dê em dobro! Não entendi bulhufas daquela cena. Achei a sua reação um tanto exagerada. Será que ele estava sob efeitos alucinógenos de manhã cedo?  Porém, houve uma mutação do comportamento, o rapaz parecia lúcido e controlado na abordagem inicial. Deveria ser um homem grato, que se mantinha feliz com pouco.

De noite, compareci a uma festa de amigos num bar na Cidade Baixa. Na hora de encerrar a comanda, procurei a nota azul de R$ 100 na carteira. Vasculhei os bolsinhos e nada. Cadê? Só tinha uma nota celeste de R$ 2.

Eu me confundira com o flanelinha. O que explicava o seu escândalo de bênção, o seu entusiasmo infinito. Troquei a tartaruga-de-pente pelo peixe garoupa. Na correria da vida, meu raciocínio acabou lento como uma tartaruga. Não conferi direito os papéis.

A gafe se tornou lendária nas provocações dos almoços dominicais em casa. Isso aconteceu há 15 anos. R$ 100 era muito dinheiro na época. Hoje corresponde a aproximadamente um terço do seu valor e do seu poder de compra. R$ 100 é o equivalente a R$ 33,59, corrigido pelo salário mínimo ou pelo IGP-M desde fevereiro de 2010.

Com R$ 100, você sai apenas com duas sacolas do supermercado, não faz mais um rancho. Você compra apenas dois dos seus medicamentos na farmácia, não completa a receita.

Em 2010, levava dois quilos de picanha. Atualmente, mal dá para um quilo.

Em 2010, com a mesma quantia, era possível pagar uma diária no Hilton, melhor hotel de Porto Alegre. Atualmente, nem se consegue custear uma noite num motelzinho de estrada.

O irônico é que o Banco Central começou a estampar animais à beira da extinção nas notas, para valorizar a sobrevivência de nossa fauna, e as próprias notas estão quase extintas. É comum desejar pagar em dinheiro e o balconista pedir Pix ou cartão, já que não tem troco.

Nem lembramos mais os bichinhos das cédulas. O beija-flor-de-peito-azul, a garça-branca-grande, a arara-vermelha, o mico-leão-dourado, a onça-pintada e o lobo-guará fugiram de nossos bolsos. _

CARPINEJAR

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