quarta-feira, 1 de junho de 2022


30 DE MAIO DE 2022
CÍNTIA MOSCOVICH

"Ao Pó": a linda estreia de Morgana Kretzmann

Vencedor do São Paulo de Literatura, na categoria estreante, um dos mais prestigiados prêmios nacionais, Ao Pó (Patuá), romance de Morgana Kretzmann, é um tratado sobre os efeitos continuados e cruéis das perversões sexuais, aquelas que podem grassar de forma insuspeita na intimidade familiar ou no círculo de relações mais chegadas.

Com saltos no tempo, alterações na cronologia da história que geram tensão e mantêm o leitor preso à narrativa, Morgana elabora um romance denso, extraindo de um enredo difícil uma carga de verdade impressionante. Sem que a narrativa resvale um só momento para a vitimização ou para apelos emocionais facilitadores, Morgana constrói uma personagem, Sofia, que, a partir de um trauma essencial, desdobra-se em conflitos: criada em uma família no interior do Rio Grande do Sul e com padrões morais rígidos mas ambíguos, habituada a crueldades em nome da boa formação, vítima de assédio sexual praticado por um tio, a menina é mais uma presa da violência doméstica, essas que parecem destinadas a ganhar apenas o silêncio covarde das paredes da casa.

No aniversário de 11 anos da irmã menor, no entanto, a revelação de que a pequena também é alvo do abusador desestabiliza a conformidade a que Sofia está habituada, e ela resolve abandonar sua cidadezinha e ir para o Rio. A partir daí, tenta se manter em pé e ativa num universo que lhe suga todas as vontades e todos os impulsos - falamos do ambiente teatral paulista, e do ambiente artístico em geral, que exige dedicação mas que nem sempre premia os mais dedicados.

Vítima de um segundo crime de violência sexual, Sofia não recebe o amparo necessário e é arrojada a uma solidão que algumas mulheres vítimas de abuso e que são vistas como responsáveis pelo próprio infortúnio tão bem conhecem. Aos poucos, a jovem entra num processo de declínio, degradação da vida amorosa e profissional que parece acompanhar aqueles cuja dignidade de uma hora a outra vira pó.

Com técnica muito elegante, de cortes precisos e supressões certeiras, Morgana tem o dom de criar situações que elevam o andamento do romance a grandes momentos de tensão - a abertura do livro e já a apresentação do conflito é todo ele pura pressão dos acontecimentos e estado de comovida incredulidade.

Com quarta capa de Luiz Antonio de Assis Brasil e orelha de Andréa del Fuego, Morgana estreia acompanhada de dois pares de excelência mais que reconhecida. É uma carreira que promete e que já nasce cumprindo.

CÍNTIA MOSCOVICH

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