segunda-feira, 4 de outubro de 2021


04 DE OUTUBRO DE 2021
CLÁUDIA LAITANO

Cenas de um casamento

Pode haver algo mais terrível do que marido e mulher que odeiam um ao outro? A frase, atribuída ao dramaturgo sueco August Strindberg, é citada logo no início de Cenas de um Casamento (1973), série de televisão dirigida por Ingmar Bergman. Ao longo de seis episódios, condensados mais tarde em um longa-metragem, a própria trama se encarrega de responder. Sim, ainda mais terrível do que marido e mulher se odiando dentro de casa é um casamento em que a solidão a dois se torna insuportável - mesmo quando ainda existe algum fiapo de amor envolvido.

Bergman foi um artista e um amante inquieto. Apaixonou-se por suas atrizes (inclusive Liv Ullmann e Bibi Andersson, que estão no elenco de Cenas de um Casamento), casou-se cinco vezes, teve nove filhos, morou numa ilha, viveu muito, morreu viúvo. Se não foi um marido perfeito (se é que a espécie existe), foi um artista genial capaz de examinar todos os sentimentos escondidos nos porões de um casamento, bem-sucedido ou não: amor, sim, mas também ressentimento, solidão, tédio e dificuldade para entender onde a cara-metade coloca (ou não) o desejo. Reza a lenda que a série teria sido responsável, na época, por uma pequena elevação do número de divórcios na Suécia - o que, me parece, fala mais sobre o talento de Bergman do que sobre a fragilidade dos casamentos suecos no início dos anos 1970.

Revisitar uma obra-prima é o pepino que o diretor israelense Hagai Levi decidiu encarar ao adaptar para os dias de hoje o mergulho no abismo conjugal proposto por Bergman. Cenas de um Casamento, o remake, em cartaz na HBO, é uma homenagem e um diálogo: recria algumas cenas com fidelidade, ao mesmo tempo em que apresenta conflitos que só seriam possíveis no século 21. (A quem, se não aos espectadores da nossa época, ocorreria estabelecer ligações entre o microcosmo de um casal que não se entende e a polarização generalizada do ambiente político?)

Falta ao remake o que sobra em Bergman: o peso do silêncio, a brutalidade de alguns diálogos, a força do que não é dito, mas Levi não barateia o legado do mestre. Ou seja: para quem não tem medo do que pode encontrar vasculhando o porão dos próprios sentimentos, vale a pena assistir.

 CLÁUDIA LAITANO

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