quarta-feira, 14 de julho de 2010



14 de julho de 2010 | N° 16396
DAVID COIMBRA


As maçãs do rosto da morena

Você está lendo um livro. Nada desses caras que estão sempre analisando os próprios sentimentos, como o Philip Roth ou aquele sul-africano chatola, o Coetzee. Não. Pegue um autor que seja homem de verdade, que não fique se remoendo de autocomiseração. O James Ellroy, seco como o ar de Joburg. O Velho Buk. O jogador de sinuca João Antônio. Um desses. Em meio à trama, o que é que você encontra?

Uma frase bem torneada.

Note: ele não é um estiloso, não é um experimentalista, nem fica se masturbando mentalmente com seus fracassos sentimentais. Mas ele torneia uma frase. Sim, senhor.

Bom. Mas se você não quiser se ocupar de frases de trivela, pense nas maçãs do rosto da Renata Vasconcellos, aquela apresentadora que vez em quando reluz ao lado do William no JN. É um prazer sutil apreciar as maçãs do rosto da Renata Vasconcellos. No próximo Jornal Nacional, abra um tinto, refestele-se na poltrona e sorva cada momento, mesmo que ela esteja chamando uma matéria sobre o Piscinão de Ramos.

Você entende o que digo? É preciso alguma reflexão para ver como são belas as maçãs do rosto da Renata Vasconcellos, ou as delicadas curvas dos braços de certas mulheres, ou a maneira como um autor encaixa um verbo numa frase.

Mais: às vezes, a beleza tem 300 metros de altura e nem assim consegue-se enxergá-la, se não há reflexão. A prova está trançada em aço eterno: a Torre Eiffel. Quando o engenheiro Gustave Eiffel a ergueu para comemorar o centenário da Revolução Francesa, em 1889, os franceses mais ilustres a repeliram.

Escritores como Guy de Maupassant, Émile Zola e Alexandre Dumas Filho a chamavam de monstruosa, escreveram teses luminosas para pô-la abaixo. Não conseguiram. Derrotado, Guy de Maupassant almoçava todos os dias em um restaurante da torre. Perguntaram-lhe por que fazia isso, se a odiava tanto. Maupassant suspirou:

– É porque este é o único lugar de Paris de onde não posso vê-la.

Gustave Eiffel não se abalava. Repetia:

– A torre revelará sua própria beleza.

Revelou. As pessoas aprenderam a olhá-la e ver nela muito da beleza de Paris.

Assim é o futebol da Espanha. Não é um futebol agudo, de linha de fundo, de bolor de grande área, de investida vertiginosa. Nada disso. É um futebol de intermediária. Um futebol sutil. A beleza do futebol espanhol não é o lançamento de 60 metros de um Roberto Rivellino; é o passe macio de Xavi, quatro ou cinco metros de bola precisa arrastando-se na grama feito uma naja nas areias do Saara.

Xavi.

Eis o nome da Espanha. Mais do que o goleiro romântico Casillas, mais do que o toureiro David Villa, mais do que o chutador Iniesta, Xavi é o homem. E nem é um grande homem. Mede metro e setenta, um Romário, não mais do que isso.

Xavi.

Seu futebol amadureceu. Aos 30 anos de idade, adquiriu a sabedoria dos pensadores, dos homens que conhecem o jogo, que dizem aos outros o que fazer.

Foi assim, com a beleza suave das maçãs do rosto de uma morena, ou da curva de braço de uma loira, ou de uma frase bem assestada, mas também com a imponência de uma torre de aço, foi assim que a Espanha se tornou uma campeã exemplar, dona de um futebol plástico e precioso. Mas que demanda certa reflexão para ser bem apreciado. E a reflexão histórica haverá de mostrar: são raros os campeões tão virtuosos quanto a Espanha.

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