
A trilha sonora das nossas vidas
O último filme exibido no recente Festival de Gramado foi o documentário Até Onde a Vista Alcança, sobre a luta dos Kariri-Xocó pela homologação de suas terras em uma região de Alagoas. Um dos aspectos que mais chama a atenção no longa é a centralidade da música no cotidiano desse povo. Quase tudo o que fazem é acompanhado de cânticos e danças: da invocação aos ancestrais à elaboração da comida, da preparação para o combate ao folguedo comunitário. Não há situação da rotina em que esses indígenas não encaixem um som bonito.
Me identifico com essa necessidade constante de fundo musical. Se Nietzsche afirmou que a vida sem música é um erro, avanço para além do bem e do mal: ela simplesmente não faria sentido algum sem melodia. A música ajuda a sedimentar lembranças, evocar emoções, enraizar a identidade, exumar do passado afetos e dores, pessoas e lugares.
Amplifica e cristaliza os significados das experiências, compondo a trilha sonora das nossas vidas. Essa espécie de sinestesia entre sons e vivências me abalroou de frente nestes dias escutando dois grandes artistas internacionais ao vivo.
No domingo, o CHC Santa Casa recebeu o cantautor Fernando Cabrera. Acompanhando-se na guitarra, o reverenciado poeta da canção uruguaia apresentou um comovente desfile de temas encharcados por lirismo e melancolia platina, que me trouxe recordações de passeios românticos pelas ruas gastas e acolhedoras de Montevidéu e temporadas tépidas nas praias abertas do "paisito" - como os uruguaios chamam carinhosamente seu lugar no mundo. "A primavera naquele bairro se chama solidão", cantou Cabrera em El Tiempo Está Después - e me desbordei todo na plateia.
Na terça, outro músico com suas cordas remexeu em suvenires da minha história. Um dos maiores nomes do jazz contemporâneo, o guitarrista estadunidense Pat Metheny conduziu o público em seu show solo no Auditório Araújo Vianna por caminhos musicais maravilhosos e surpreendentes. No bis, quando ouvi Sueño con Mexico, revisitei em sonho acordado as amizades de faculdade, as noites de boemia no Bom Fim, os discos do selo ECM gravados em fita cassete, as paixões de juventude, o frescor das primeiras vezes. Música serve pra isso. _
ROGER LERINA
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