
Rumo ao centenário
Queria denunciar o restaurante Santo Antônio. Tem algo de sobrenatural ali: como pode permanecer tão bom durante 90 anos recém-completos? Que me passe a receita da longevidade. É a churrascaria mais antiga do país.
Entre os bairros Floresta e Moinhos de Vento, o negócio familiar surgiu do boca a boca das marmitas e viandas entregues aos vizinhos, em seguida se transformou em café, até se materializar na tradicional casa da Rua Dr. Timóteo.
São italianos gaudérios. Contra o desperdício, dispensaram o espeto corrido pela carne à la carte.
Jorge Aita e Elaine Congetta Aita, os irmãos proprietários, me conhecem desde pequeno. Desde quando eu tinha fartos cabelos loiros e fazia birra para ganhar a caixa de docinhos que vinha após a refeição.
É evidente que meus pais não cediam à chantagem dos quatro filhos. Era uma vitrine de guloseimas que meus irmãos e eu não ousávamos tocar. Almoço fora já era sobremesa. Meus velhos foram crianças naquelas mesas, assim como eu. Nossa família já está na quarta geração como clientela.
Pedimos sempre os mesmos pratos: ovos com gema mole para comer com pão, filé alho e óleo e fritas. Incrivelmente, nunca consultei o cardápio. Nem sou capaz de opinar sobre o que mais oferecem.
Convivo com a brigada de garçons há quatro décadas. Vi seus rostos mudarem, como numa vida concentrada em duas horas de filme. Sei seus nomes, seus sonhos, seus times de futebol. Humilham as facas: eles cortam bifes de dois andares com colher.
Lembro que o restaurante assumiu pioneirismo na capital gaúcha ao criar uma brinquedoteca, uma salinha com jogos e brinquedos, que servia de luxuosa creche para nossos pequenos enquanto nós, adultos, prolongávamos a saideira com fofocas e chopes. Cuidavam de nossas crianças e não apressavam a conta - não havia domingo mais perfeito.
Estive lá quando a maioria fumava, depois quando se reservou um anexo para fumantes, depois quando os fumantes sumiram. O estabelecimento segurou valentemente suas portas abertas. Não sucumbiu à pandemia. Nem às duas enchentes - a de 1941 e a de 2024. Nem ao Plano Cruzado e aos fiscais do Sarney. Nem ao Plano Collor e ao confisco da poupança.
Em seu quase centenário caixa, já mexeu com real brasileiro, com cruzeiro, com cruzeiro novo, com cruzado, com cruzado novo, com cruzeiro outra vez, desembocando na moeda atual.
É uma teimosia que se mescla à esperança. Uma tenacidade que se mistura à loucura. Não é pequena a proeza de manter um comércio tão constante em igual ponto. Basta pensar que Porto Alegre só tem 163 anos a mais do que ele. É cartão-postal do nosso fim de semana, um endereço tombado pela paixão, um "aquece" antes do Beira-Rio e da Arena.
Em nenhuma visita deixo o portal da gula decepcionado, frustrado, ressentido. Acho apenas que comi demais. Prometo moderar numa próxima oportunidade, o que felizmente não cumpro.
E o mais curioso: por respeito aos meus pais, jamais provei sequer um dos brigadeiros e quindins da tentadora caixa de Pandora. Sigo obediente. Por mais que eu possa, não devo. Não pretendo obter vantagem alguma sobre o meu passado.
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