quarta-feira, 6 de agosto de 2025


06 de Agosto de 2025
MÁRIO CORSO

Suzana

Minha primeira amiga se chamava Inês. As histórias sobre ela chegam através da memória das nossas mães, não lembro nada.

Deveria ser uma amizade sincera e recíproca. Dizem que ficávamos felizes em nos encontrar e engatinhar juntos pelo chão. Apenas, em certo momento, começamos a trocar dentadas. A brincadeira acabava e recomeçava no outro dia, para terminar no mesmo desfecho.

Antes que me acusem de atacar mulheres indefesas, eu era mais jovem do que ela, algo como uns dois meses. Isso faz bastante diferença quando se é bebê. No mínimo, seriam dentadas de mesma arcada e de força mandibular equivalente. Era um jogo, afinal, no outro dia seguiria o campeonato de dentadas categoria livre - onde morder é ponto.

Não houve título porque o campeonato acabou. Mudamos de cidade. Para uma criança, mudar de casa é morar em outro planeta, de cidade, então trata-se de outra galáxia. Foi azar me afastar da Inês, mas sorte encontrar Suzana. Outra vez uma vizinha de porta da mesma idade. Evoco fácil minhas memórias dela. Brincávamos juntos e nunca houve mordidas.

Bem, teve um incidente vergonhoso da minha parte. Um dia, estávamos brincando e ela e a babá se afastaram para um canto do jardim. Indiscretamente, fui atrás. Ela fora fazer xixi e eu a vi, semidesnuda, no ato da micção. Foi a minha primeira gafe, e material para muitas sessões de análise. Nós meninos, nunca estamos preparados para descobrir como são os genitais das meninas.

Suzana perdoou minha deselegância. Seguimos brincando juntos todos os dias, até que um dia acabou. Eu perguntava por ela e ninguém respondia. Ou vinham com conversas que não convenciam nem o meu joão-bobo.

Infelizmente, não se fala de morte com crianças. Levei anos juntando peças. Suzana era vítima da Talidomida, um medicamento com efeito teratogênico desconhecido na época. Um dia ela caiu de uma escada longa. Como seus braços eram demasiado curtos, o reflexo de proteção, que é ativado em quedas, não a salvou. Ela machucou-se muito e morreu.

Conto essa história por dever de amigo, não sei se alguém ainda lembra dela. Eu lembro e choro sozinho. Queria que mais gente soubesse que houve uma linda menina chamada Suzana, que mal conheceu a vida. 

O conteúdo desta coluna reflete a opinião do autor

MÁRIO CORSO

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