sábado, 14 de dezembro de 2019



14 DE DEZEMBRO DE 2019
CARPINEJAR

Com quem casamos no céu?

Eu deveria ser um piá de nove anos. Quando o nosso vizinho faleceu de ataque cardíaco, em Guaporé (RS), toda a nossa família largou os afazeres e prestou condolências a sua esposa, Dona Dirce. Não só a gente, é costume no interior do Estado a cidade inteira se reunir na calçada da casa de quem perdeu alguém. Forma-se aquela aglomeração comovida de praça diante de um endereço. Não há como não chamar atenção do ocorrido. Motoristas diminuem o ritmo, questionando o que houve, pedestres se aliam à multidão de curiosos.

A mãe me contou que ela enviuvou pela segunda vez. Teve um casamento de 10 anos, com três filhos, e outro de três décadas, com uma filha. Enfrentou a sina de enterrar dois maridos, antes o Giusepe, agora o Francisco.

Na conversa sussurrada, a mãe tentou amenizar a perda descrevendo que as pessoas boas vão para o céu, que o fim é apenas o começo da eternidade. Foram palavras bonitas maternas, nem poderia esperar uma reação diferente.

Daí me veio uma incerteza cruel, e perguntei ingenuamente, não freando o meu espírito insaciável de criança:

- No céu, Dona Dirce estará casada com quem? Com Giusepe ou Francisco?

A mãe não soube me dar resposta. Só disse para parar de pensar bobagem. Mas era uma preocupação legítima, que continua com a sua validade, apesar de adulto e de tanto tempo transcorrido da lembrança.

Dona Dirce morreu oito anos depois - quem ela terminou escolhendo para permanecer ao seu lado? Giusepe ou Francisco?

Ela casou com os dois no religioso, prometeu lealdade aos dois até que a morte separasse os corpos, formou família com os dois, amou os dois com a mesma disciplina, é um dilema transcendente de complexa solução.

No céu, será que é permitida a poligamia? Será que o padrão de comportamento é a relação aberta?

Dona Dirce estaria, empoderada, passeando com os seus dois maridos, faceiros e livres do ciúme, um em cada braço, na carruagem dos anjos?

Ou a alma é sempre solteira, e ninguém fica com ninguém, e cada um cuida de si, destruindo a nossa idealização romântica de amor eterno?

Se somos casados lá em cima, nossa companhia será definida por quais critérios: fidelidade, companheirismo, superação de adversidades? Ou tudo será a surpresa da descoberta e do julgamento repentino de quem mais se amou na vida?

Imagine o constrangimento de sair de um matrimônio terreno para um totalmente inesperado no além, com alguém de quem nem achávamos ter gostado tanto.

Na dúvida, já combinei com a minha esposa um pacto pós-morte. Espero que ela cumpra e não me deixe na mão.

CARPINEJAR

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