24 DE DEZEMBRO DE 2019
NOITE FELIZ
A arte de ser Papai Noel
Durante uma semana, ZH acompanhou a rotina de sete Bons Velhinhos de quatro shoppings da Capital e Região Metropolitana
Cedo da manhã de um sábado, tocou o telefone de Laércio Roca, que, àquela altura do ano, já atendia com naturalidade pelo nome do seu alter-ego: - Papai Noel, primeiramente o senhor me desculpe por ter ligado. Não queriam me dar o seu número, mas eu expliquei que era uma situação especial.
Laércio, hoje com 76 anos e Papai Noel há mais de cinco décadas, logo entendeu de quem se tratava. Era a mãe de uma menina especial de oito anos que, debilitada e deprimida, já não se comunicava com ninguém. Desde o dia anterior, quando fora recepcionada calorosamente pelo Papai Noel do shopping - "Mas que lindo esse teu trenó, guria. Abram espaço!" -, ela havia voltado a conversar normalmente. A ligação era um agradecimento e uma convocação para que ele visitasse a família no dia 24:
- Senhora, eu não posso. São mais de 10 casas que eu visito há anos nesta noite. Não tenho como desmarcar com nenhuma.
- Papai Noel, o senhor não está entendendo. A estimativa de vida da minha filha é de dois meses.
Laércio engasgou: - Às 22h está bom para vocês?
Diversão
Papai Noel das 10h às 16h no BarraShoppingSul, Laércio conta a história com os olhos ensopados para dar um exemplo do tipo de experiência que passam os Bons Velhinhos nas poltronas dos shoppings de Porto Alegre e Região Metropolitana. Ao longo de uma semana, ZH conversou e conviveu um pouco com sete deles em quatro estabelecimentos. Conheceu homens completamente diferentes - no Barra, por exemplo, o pequeno e agitado Laércio, de 1m70cm e 78 quilos, dá lugar às 16h a Felipe Pschara, um homenzarrão de 1m87cm e 135 quilos com pinta de roqueiro. Mas todos encaram a missão não como um ator vivendo um papel, mas como misto de psicólogo, padre e confidente que se tornam assim que vestem vermelho.
- É engraçado, porque a seleção costuma ser pela aparência. Mas, depois, a gente aprende que exige um monte de coisa. Não adianta ter barba e não ter paciência - resume Tomaz Velasquez, 69 anos, do Praia da Belas.
Quase todos começaram por acaso. Tomaz viu o cabelo e a barba branquearem da noite para o dia quando a mulher faleceu, há 15 anos. O convite para ser Papai Noel veio em boa hora para recuperar a alegria. Já o seu colega no Praia de Belas, José Vicente Pokorski, 62 anos, começou de improviso em 2001 quando o Papai Noel contratado pela sua empresa literalmente se borrou de medo de subir em um helicóptero.
- No ano seguinte, já ofereceram direto pra mim. Trabalho no final de ano, mas, para as crianças da minha vizinhança, sou o Papai Noel e pronto. O ano inteiro. É muito engraçado quando enxergam a minha roupa no varal - diverte-se.
Ética
A partir daí, cada um estabelece seu código de ética, com alguns pontos em comum. Todos os Papais Noéis, por exemplo, vetam listas longas de presentes. Alguns alegam falta de espaço no trenó, outros a necessidade de atender a outras crianças. Também é unânime o recebimento de mamadeiras e chupetas, mas há os que pegam com a mão direita e devolvem aos pais com a esquerda, para possíveis crises de abstinência futuras. Outras regras são mais particulares.
- Quando pedem arma de brinquedo, digo que o Papai Noel não gosta. Alego que alguém pode achar que é de verdade e machucá-las - diz Felipe, 62 anos, que também é motorista de aplicativo. - As crianças continuam me reconhecendo como Papai Noel o ano todo. Digo que estou disfarçado para ver se elas estão se comportando.
Reduções na lista de pedidos, negociações sobre melhoras no boletim escolar ou no comportamento em casa são situações que os Papais Noéis ouvem aos montes e tiram de letra. Porém, não raro escutam pedidos ou meros desabafos muito mais complicados. Certa vez, uma adolescente se aninhou debaixo da barba de Felipe e contou ter tentando suicídio. Seu desejo de Natal era não ser internada.
Nelson Estevão Tibursky, 66 anos e Papai Noel no Park Shopping Canoas, ensopa a barba de lágrimas do alto dos seus 1m98cm ao contar de um menino que pediu, em vez de presente, ajuda para encontrar o pai sumido havia seis anos.
- Quando tu lê uma cartinha dessas, faz o quê? Fiz o mínimo que eu podia. Peguei o endereço e respondi. Escrevi de coração aquilo que eu achei que poderia fazer ele se sentir melhor - conta.
Embora o reforço financeiro de final de ano seja bem-vindo, situações assim fazem com que os Papais Noéis invariavelmente se engajem em alguma atividade beneficente. No ano passado, Nelson escolheu 12 cartas com pedidos de material escolar e atendeu. Além disso, faz kits de presentes e visita os bairros mais pobres de Canoas a caráter. Felipe prefere fazer o mesmo em asilos, enquanto Laércio gosta de mobilizar forças-tarefas para os presentes mais complicados das suas cartinhas. Uma das últimas façanhas foi conseguir um colchão para uma criança que havia perdido o seu em um incêndio.
- Até gosto quando cai essas broncas pra mim, porque, se é comigo, resolvo. É Papai Noel, ora bolas.
CAUE FONSECA
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