quinta-feira, 26 de dezembro de 2019



26 DE DEZEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA

A cobra do Natal

Fez grande sucesso a história da cobra de Natal. Contei-a no Timeline, da Gaúcha, e os ouvintes ficaram excitados e mandaram mensagens e fizeram comentários.

Foi o seguinte: no dia 24, fomos fazer um happy hour na casa de uns amigos aqui de Brookline. É uma família muito querida, com formação típica dessa região cosmopolita: ela, Carol, é gaúcha; ele, Igor, é russo; e os dois filhos, de 10 e cinco anos de idade, são americanos.

Por viverem há décadas nos Estados Unidos eles assimilaram bem a cultura e os hábitos do país, inclusive alguns que podem parecer esquisitos para os brasileiros - como ter uma cobra de bicho de estimação.

Sério: para os americanos, é natural criar serpentes em casa. Você passa na frente de uma loja de animais e vê cobras na vitrine. E um filho do casal, Alex, passou semanas implorando para ganhar uma, até ser atendido.

Na véspera do Natal, lá estávamos nós, provando dos acepipes deliciosos que a Carol havia preparado com as próprias mãos, quando o menino avisou que iria buscar seu bichinho de estimação no quarto a fim de apresentá-lo para as visitas. Pensei que estava se referindo a um cachorrinho ou a um gatinho, mas ele voltou de lá com uma cobra de mais ou menos um metro de comprimento.

Arregalei os olhos. Nenhum bicho me provoca maior repulsa do que a cobra, apesar de também não nutrir simpatias pelo ornitorrinco. Fiquei um pouco tenso, mas o menino Alex insistiu para que interagíssemos com seu animalzinho, alegando o que alegam todos os donos de animaizinhos:

- Ela é mansa...

Sei.

Então, a Marcinha, mais corajosa, foi na frente. Tomou a cobra nas mãos, não sem emitir um breve gritinho denotando um sentimento localizado entre a surpresa e o horror.

Entendo o horror. No Gênesis, depois que a serpente, "o mais astuto de todos os animais selvagens", convenceu Eva a dar uma dentada no fruto proibido, Deus lhe disse:

"Porque fizeste isso, serás maldita entre todos os animais domésticos e entre todos os animais selvagens. Rastejarás sobre teu ventre e comerás pó todos os dias de tua vida. Porei inimizade entre ti e a mulher, entre tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar".

Ou seja: mulheres e serpentes são inimigas naturais. Mas a Marcinha, bravamente, continuou com a cobra nas mãos e ficou firme enquanto ela se lhe enrolava nos braços de forma reptiliana. Alex, com grande simpatia e poder de persuasão, convenceu o Bernardo a fazer o mesmo e, em seguida, estendeu-me a cobra com as duas mãos:

- Now it?s your turn.

Agora era a minha vez.

Que fazer? Todos estavam me olhando, não podia ser eu o único a rejeitar o desafio da cobra. Olhei para ela. Ela olhou para mim. Mostrou-me sua linguinha bifurcada. O que significaria aquilo? Simpatia? Ou antipatia? Naquele momento, surgiu-me a dúvida:

- O que ela come?

- Rato - informou-me a Carol, com uma naturalidade admirável.

- Cristo! E onde ela consegue os ratos?

Carol foi até a geladeira, abriu a parte de cima, do freezer, e de lá tirou, por Deus Nosso Senhor, um saquinho cheio de ratos congelados.

- Ela os come inteirinhos - contou a Carol. - Um por semana é o suficiente. Não dá trabalho, mas, depois, o cocô cheira muito mal.

Com essa dieta, não admira?

A todas essas, o menino continuava ali, me oferecendo a cobra. Suspirei. É Natal, pensei. Abri as mãos. Ele colocou a cobra entre meus dedos e ela se enroscou no meu punho. Senti o contato da pele fria e lembrei da maldição que caiu sobre a primeira serpente, no Paraíso. Dez segundos depois, devolvi a cobra para o menino. É Natal, repeti para mim mesmo. E rezei para que, no ano que vem, ele não decida adotar um ornitorrinco.

DAVID COIMBRA

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