28 DE DEZEMBRO DE 2019
LYA LUFT
Boas festas
Infância: o jardim eram todos os segredos: as vozes murmuravam entre as folhas e sussurravam no vento. O horizonte eram morros azuis da tinta que um anjo distraído deixara cair do céu. Todos os mundos que criei, pessoas que inventei, músicas irreais que eu compus nasceram ali na infância: perderam-se mas persistem porque nada no caminho do tempo é fatal.
Autorretrato: do pai, a retidão e certa melancolia: o olhar sobre o que vem atrás das coisas. Da mãe, a alegria. Da remota linhagem, o novelo de fios que tramam alma e imagem, ninguém sabe quando e onde. Mais os trabalhos e a dor, a fantasia, a obstinada procura, alguma sorte, muita esperança na bagagem. (Dissabores fazem parte: maior foi a celebração da vida.) Entre o começo e a morte, mar e miragem: não há muito de mim na personagem que enxergam. Há que buscar o que ela esconde.
Poeminha: dormem os grandes navios do sonho, como num porto: boiam rostos ou espumas à flor de um espelho morto. Não tenho certeza de nada e mesmo assim me disponho: sou um reflexo no fundo de um corredor ou de um sonho? Deitada na grama, contemplo: no azul do céu ou das águas passam vultos como velas. (São miragens os navios ou as nuvens, caravelas?)
Busca: naquele tempo sem tempo, a verdade parecia estar nos livros: ali moravam as respostas e nasciam os nomes. Quanto mais procurei, mais me enredei na ramagem das indagações: as respostas não vinham, a verdade era miragem, a busca era melhor do que a descoberta - e nunca se chegava. (Viver era mesmo sentir aquela fome.)
Palavras: abro a gaveta, e salta uma palavra: dança sedutora sobre o meu cansaço, veste-se de indefinições, vagueia no labirinto das ambiguidades. Acha graça de mim, que espero à frente encontrar a solução dos meus enigmas. Tento uma geometria que a contenha no espaço entre dois silêncios quaisquer, mas ela decide meus passos: peso de fruta no sono da semente, assiste à minha luta quando a desejo aprisionar e, às vezes, até finge que sou eu a senhora, a domadora, a fonte. Palavras são livres e riem dos poetas: nós, mediação incompetente.
Condição: se me quiserem amar, terá de ser agora: depois estarei cansada. Minha vida foi feita de parceria com a morte: pertenço um pouco a cada uma, pra mim sobrou quase nada. Ponho a máscara do dia, um rosto cômodo e simples, e assim garanto a minha sobrevida. Se me quiserem amar, terá de ser hoje: amanhã estarei mudada.
Esperança: os deuses estavam de bom humor: abriram as mãos e deixaram cair no mundo os oceanos e as montanhas, os campos onde corre o vento, as árvores com mil vozes, as manadas, as revoadas - e, para atrapalhar, as pessoas. Todas correndo atrás de mil coisas ou de coisa nenhuma: tudo menos parar, pensar, contemplar. Enquanto isso, a Morte revira seus grandes olhos de gato, termina de palitar os dentes e prepara o bote.
Mas a gente sempre aposta na vida.
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