09 DE DEZEMBRO DE 2019
DAVID COIMBRA
A greve dos professores
O terrível da greve dos professores é que eles têm razão e o governo também. Todos estão certos nessa disputa, o que significa que todos perderão.
Minha mãe foi professora do Estado. Em seu tempo de menina, era esse o encaminhamento natural para a mulher que quisesse "trabalhar fora". A moça terminava a escola e fazia o "Curso Normal". Ninguém mais sabe o que era o Normal.
Dias atrás, o Potter e um amigo nosso, o Thiago Karsten, vieram aqui em casa. Preparei um suculento e imodesto carreteiro para eles. Depois do jantar, pegamos nossas taças de vinho, nos espalhamos pela sala e ficamos ouvindo música, nós três mais a Marcinha e o Bernardo.
De repente, rolou um Belchior cantando aquele seu verso imortal, que, de alguma forma, tem a ver conosco, que estamos exilados aqui nessas lonjuras geladas:
"Gente de minha rua
Como eu andei distante
Quando eu desapareci
Ela arranjou um amante
Minha normalista linda
Ainda sou estudante
Da vida que eu quero dar?"
Aí o Thiago, que é bastante ilustrado, mas é bastante jovem, perguntou:
- O que é "normalista"?
Nesses momentos é que constato minha idade provecta. Porque minha mãe e várias mães de amigos meus foram normalistas, fizeram aquele antigo curso que, depois, seria absorvido pelo de magistério. Minha mãe foi boa professora. Sei disso porque testemunhei muitos dos seus ex-alunos, já adultos, que a reencontravam e se emocionavam:
- Eu adorava as suas aulas...
Mas, em certo trecho da vida, quando ela se desquitou e se viu sozinha com três filhos para criar, desistiu da carreira da qual tanto se orgulhava. Se continuasse como professora, não teria como nos sustentar.
Estou falando dos anos 70. Quer dizer: a penúria dos professores vem de longe.
Fico pensando quantas pessoas com vocação para o magistério não abandonaram essa missão ou nem sequer tentaram cumpri-la por saber das condições em que vive um professor no Rio Grande do Sul. Fico pensando em quantos ainda insistem, mas com amargura, pensando em se aposentar. Quanto desperdício de talento. É uma perda que jamais conseguiremos medir.
Consigo avaliar um pedaço desse prejuízo por causa da experiência que tive aqui, nos Estados Unidos. Meu filho chegou para fazer o primeiro ano primário sem saber falar inglês, numa escola pública em que ninguém falava português. No primeiro dia, a Marcinha queria passar parte da manhã na escola, para ele não ficar muito assustado, e as professoras a dispensaram:
- Pode deixá-lo conosco.
Elas sabiam o que fazer. Foram extraordinárias. Dedicadas, atenciosas, competentes, trataram aquele menino estrangeiro como se fosse filho delas. Em semanas, o Bernardo estava adaptado e falando em inglês. Como os ex-alunos da minha mãe, nunca esquecerei as ex-professoras do meu filho.
O sucesso dos Estados Unidos tem como matriz a escola pública. Professores bem tratados, atuando em boas escolas, tratam bem os alunos.
Mas esse círculo virtuoso só se completa porque o Estado é funcional. No Brasil é o contrário. A nossa crise é uma crise do Estado. As nossas dores são provocadas pela falência do Estado. E é esse ponto nevrálgico que dá razão também ao governo do Rio Grande do Sul. O Estado está quebrado, e não apenas o gaúcho: o Estado brasileiro entrou em colapso.
Então, é preciso fazer algo. É preciso reformar o Estado. Assim, voltamos ao princípio: se o Estado for reformado, os professores perdem. Se não for reformado, perdem. Quanto ao governador, ele perderá em prestígio se reformar ou se não reformar. Todos perderão, portanto. E, no meio disso tudo, assistindo à formação do caos com os olhos arregalados, ficam as crianças. Ninguém perderá mais do que as nossas crianças.
DAVID COIMBRA
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