sexta-feira, 9 de março de 2012



9 de março de 2012 | N° 17003
DAVID COIMBRA


A noite do tomate gaúcho

A noite porto-alegrense já se erguia a razoável altura e estávamos famintos e sedentos, eu e o Ivan Pinheiro Machado, e então resolvemos matar a fome e saciar a sede com a cozinha honesta do Bar do Beto.

Entramos, nos aboletamos a uma mesa de canto, o velho garçom Dinarte se aproximou com seu velho sorriso e eu:

– Dinarte, o que é que tem de bom aí para dois homens que sentem fome?

O Dinarte não titubeou. Baixou a voz, inclinou-se para mais perto dos nossos ouvidos curiosos e recomendou, como se segredasse:

– Tem um tomate gaúcho ali na cozinha que está es-pe-ta-cu-lar.

Olhei espantado para o Ivan, e o olhar que ele me devolveu não parecia menos espantado. Era a primeira vez que um garçom me oferecia tomates. Não tomates, aliás: tomate. Um deles, um único em especial, que o Dinarte devia estar observando há horas, sempre que incursionava pela região conflagrada da cozinha.

Não sou homem de comer saladas, francamente, prefiro animais mortos, mas a sugestão do Dinarte me comoveu pela especificidade, pelo pormenor que só é percebido por quem se interessa pelo que está fazendo. Outro garçom, menos atento, jamais daria atenção a um tomate solitário na cozinha do restaurante e nem o indicaria como a joia da coroa da casa. Decidi-me. Dei um soco na mesa:

– Traga esse tomate, meu bom Dinarte! E alguma coisa mais.

O Dinarte se foi, satisfeito, e, quando voltou, trouxe com ele, esparramado em fatias numa travessa prateada, como se fosse Cleópatra se oferecendo a Júlio César, um tomate do tamanho de um melão, rubro feito pudor de virgem, luzidio como luzidias são as pernas da Megan Fox, de aparência suculenta, como suculentos são os lábios de Scarlett Johansson. Como coadjuvantes, vinham aqueles que, em outras circunstâncias, seriam atores principais: uma panela de carreteiro de charque e uma porção alentada de feijão mexido, bem temperado com salsinha, óbvio.

Dois minutos depois, distribuí no prato branco três colheres de carreteiro de charque e, ao lado, deitei uma de feijão mexido. Duas fatias do tomate gaúcho, cada qual com o diâmetro de um pires, foram suficientes para cobrir esses dois amáveis outeiros. Piquei-as com critério, espargi sobre tudo molho de pimenta e quatro fios de azeite de oliva, e pronto.

Sim, senhor.

O tomate gaúcho estava es-pe-ta-cu-lar.

Foi o melhor tomate que já comi na vida, e duvido que venha a provar outro igual, enquanto estiver mastigando pelos bares do mundo. Claro, tudo graças ao zelo do Dinarte. Ao seu capricho. O que me faz lembrar do meu avô, que vivia sempre a repetir:

– Capricho, David. A gente tem que fazer as coisas com capricho.

É fácil distinguir o capricho. Uma cidade que é cuidada com capricho, por exemplo, não pode ter outdoors e cartazes publicitários empanando a visão dos cidadãos. Não falo só de outdoors irregulares, que são milhares. Não falo só de outdoors voadores, um deles tendo atingido mortalmente o passageiro de um veículo, dias atrás. Não. Falo de TODOS os outdoors. É feio. É relaxamento. Não teríamos de conviver com esses pequenos monstrengos, se houvesse mais Dinartes por aí.

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