terça-feira, 8 de julho de 2008



O COTIDIANO DE INGRID

Não sei se Ingrid Betancourt escreveu um diário durante seus quase 2,5 mil dias de cativeiro. Duvido. Mas o relato que fez aos jornalistas, na embaixada da França, em Bogotá, do seu dia-a-dia na selva é horripilante.

Mostra que as Farc não passam de um bando de fascistas e de idiotas praticantes da violência explícita. Revela que quem os defende não tem a menor noção de direitos humanos ou de respeito à liberdade.

Os prisioneiros dormiam acorrentados pelo pescoço. Muitas vezes, por crueldade, os algozes apertavam as cadeias para machucar o corpo dos infelizes. 'As correntes eram muito grossas, os cadeados eram muito grossos. Eu terminava com as clavículas peladas pelo roçar da corrente', contou Ingrid.

O máximo de concessão que se fez a ela foi permitir que dormisse amarrada pelo tornozelo. Cada um devia tirar as botas e entregá-las aos carcereiros.

Eram medidas de segurança para evitar fugas. Às 5h da manhã, abriam os cadeados. As mulheres, durante a noite, tinham de fazer as suas necessidades fisiológicas na frente dos guardas, sob a luz das suas lanternas, não raras vezes focadas diretamente sobre elas.

Uma frase terrível de Ingrid Betancourt diz tudo por ser incompleta: 'Bem, tudo o que não conto para vocês é porque são coisas muito minhas e é muito doloroso'. O mais incrível é que exista partido político, presidente de nação e militantes do melhor dos mundos para defender esses anjinhos.

Depois de algum tempo de cativeiro, explicou Ingrid, as palavras desaparecem. Não há mais o que dizer. Impera o silêncio do desespero. E o desejo de morrer. Ela caiu em depressão e parou de se alimentar. Foi salva por um companheiro de infortúnio que lhe deu comida na boca.

Foram seis anos de humilhação até para vestir a roupa após o banho: 'Depois, ir para a barraca, vestir-se com muito cuidado para que a toalha não caísse enquanto se veste a roupa íntima, com muito cuidado para que não nos ataque um escorpião, ou qualquer bicho, enquanto está se trocando.
Todos fomos picados por algum bicho'. No meio da selva, o olhar dos machos guerrilheiros, sempre à espreita, feria mais do que formigas e escorpiões.

Uma rádio suíça divulgou que a operação de libertação de Ingrid foi um teatro. Os Estados Unidos teriam pagado 20 milhões de dólares pelo resgate. Tudo indica que não foi assim, mas não importa.

Teria sido justo. É preciso, de toda maneira, favorecer o presidente Álvaro Uribe na sua luta contra um movimento guerrilheiro anacrônico em fase de agonia.

Patéticas mesmo foram as declarações dos presidentes da Bolívia e do Equador, Evo Morales e Rafael Correa, tentando inventar um papel decisivo para o fanfarrão Hugo Chávez nessa jogada bem-sucedida.

Depois de tantos bestsellers baseados em testemunhos ligeiros (um dia na vida dos tibetanos, três meses com as muçulmanas, etc.), o mundo poderá ler, cedo ou tarde, o relato total, absoluto, intenso, terrível e verdadeiro de quem, de fato, experimentou o inominável.

Ingrid Betancourt conheceu o medo e o lado mais escuro do fanatismo político. As suas memórias farão dela uma Anne Frank vítima do narco-marxismo.

Talvez, por dignidade, ela não pense em escrever. Será assediada por editores. Deve fazê-lo. Cabe-lhe descrever detalhadamente o cotidiano do horror, a farsa da utopia, a face real de uma ilusão que ainda continua a produzir o mal.

juremir@correiodopovo.com.br

Ainda que com chuva nesta Porto e que por isso não está nada Alegre, que tenhamos todos uma ótima terça-feira.

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