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quarta-feira, 9 de julho de 2008
09 de julho de 2008
N° 15657 - David Coimbra
O guardinha e os elefantes
Tinha um guardinha que vigiava os blocos onde a gente morava. Vários guardinhas, na verdade - eles faziam revezamento. Mas este, em especial, nos dava medo. Era um guardinha brabo. Cabrera, chamava-se. Tinha muita energia, o Cabrera, estava sempre nos cuidando, sempre em cima. Isso não pode, isso é proibido, sai daí, guri.
Baita chato.
Esse Cabrera, ele era muito cioso das suas prerrogativas de guardinha. Achava-se uma autoridade, e naquele tempo as autoridades eram autoritárias.
Então, ele andava entre os prédios com o queixo erguido, pisando firme, olhando para todo mundo como se dissesse "Eu sei de tudo, rapaz! De tudo!"
Aí é claro que a gente sacaneava o Cabrera. Descobrimos que, depois de almoçar, ele tirava a sesta no salão de festas. Para se encostar nas cadeiras do salão, o Cabrera descalçava os coturnos e os punha atrás da porta.
Um dia, fomos lá e colocamos... como direi para não ser acusado de escatológico?... coisas... melequentas dentro dos coturnos dele. Até hoje lembro do guincho de nojo que o Cabrera emitiu depois de calçar as botas.
Passávamos o dia incomodando o Cabrera com pequenas, grandes e médias sacanagens. Os outros guardinhas, não incomodávamos; o Cabrera, sim. Por causa da brabeza dele, evidentemente. Tratava-se de um repressor.
Todo repressor vira motivo de piada. É o que acontecerá com essa procuradoria do Tribunal da CBF. Rigorosa demais, repressora demais. Chata demais. Não demora, vira alvo de sacanagens. Talvez não tão repugnantes quanto as que fazíamos com o Cabrera, mas, de toda forma, sacanagens.
Aliás, o Cabrera. Vou contar agora o que aconteceu com o Cabrera. Por Deus que aconteceu o que vou contar. Foi o seguinte: um dia, ouviu-se o som de tiros no local em que ficavam os latões de lixo dos prédios.
Todo mundo correu para ver o que era. Lá estava o Cabrera, de pé, as pernas bem abertas, soprando a boca fumegante do cano do revólver. O pessoal: o que foi? O que foi, Cabrera? Ele, devolvendo o revólver ao coldre:
- Matando elefante!
Amalucou, o Cabrera. Viu no que dá tanta repressão?
O julgamento de Flaubert
Flaubert, quando escrevia, pegava cada palavra e a media, sopesava-a, examinava-a de viés e revés e só a incrustava na frase quando atingisse a certeza de que o conjunto ficaria nada menos do que perfeito. Ainda assim, no dia seguinte, relia o já escrito e cortava e acrescentava e substituía ou, não raro, riscava tudo.
Madame Bovary, sua maior obra, consumiu-lhe cinco anos da vida. Flaubert avançava no texto com critério de ourives, frase a frase, página a página, menos de uma página por dia.
Bem menos - tenho cá uma edição da Abril, da coleção Imortais da Literatura Universal, capa vermelha com dourado, na qual a frase que fecha o romance, "Acaba de receber a Legião de Honra", está pendurada no meio da página 261.
Quando enfim Flaubert pingou o ponto final na trama, precisamente depois da frase reproduzida acima, uma revista de Paris interessou-se em publicá-la em capítulos. Assim foi feito. Mas bastou a primeira parte da história vir a público para que os leitores reagissem. Nada bem, aliás.
O diretor de redação da revista escabelava-se ao ver sua mesa de trabalho coberta por cartas de protesto. Uns reclamavam que a história era imoral, outros que ofendia os moradores do campo por retratar pejorativamente os seus costumes. O diretor não suportou a pressão. Sustou a publicação do folhetim.
Não foi o suficiente para a sanha moralista francesa. Flaubert foi processado. No começo de 1857, arrastaram-no ao banco dos réus. Depois de uma semana de debates, acabou inocentado. Mas, no veredicto, o juiz aproveitou para passar-lhe uma reprimenda, observando, estufado de autoridade legal e artística:
- Existem limites que a literatura, mesmo a literatura ligeira, não deve transgredir.
Não foi necessário nem o distanciamento histórico para que o mundo descobrisse a extensão da estupidez desse juiz. Publicado em livro, Madame Bovary, classificado pelo magistrado como "literatura ligeira", alcançou 300 edições, foi traduzido para praticamente todas as línguas civilizadas e transformou-se num dos maiores clássicos da literatura de todos os tempos.
Se o juiz se restringisse a fazer o seu trabalho, absolvendo tecnicamente Flaubert, como absolveu, seria incensado pela posteridade. Mas não.
Ele aproveitou para dar o seu palpite moral e literário, e foi infeliz em ambos. É um dilema da Justiça, sei. A Justiça não é matemática, não é exata, até porque sua matéria-prima são conflitos humanos.
Mas o juiz, qualquer juiz, tem a obrigação de valer-se de um predicado subjetivo e vago, porém inestimável: o bom senso. E o bom senso recomenda, sempre, que a autoridade não deve ser autoritária. Deve ser tolerante e até compreensiva com os dilemas e as falhas humanas.
Há muitos casos, no Brasil de hoje, em que a Lei não chega a tal excelência. Há regulamentos em excesso, no país. Normas em excesso. Até no ambiente prosaico do futebol. Por exemplo, a Procuradoria do Tribunal da CBF.
O procurador parece empenhado em descobrir crimes mesmo que não haja vítimas. Pretender punir comemorações de gol, por exemplo, é um abuso tão óbvio quanto tacanho.
Embora, isso também é verdade, vivamos um tempo de proibições e moralismo, um tempo em que se acredita que a solução para todos os males é a lei. Não é. Nunca foi.
E, mais tarde, como ocorreu com o juiz que espinafrou Flaubert, vai-se perceber que muito do que hoje tem a aparência de correto e rigoroso, não passa, de fato, de cândida estupidez.
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