terça-feira, 8 de julho de 2008



08 de julho de 2008
N° 15656 - Moacyr Scliar


A modesta glória dos abstêmios

É possível que a chamada Lei Seca seja um tanto exagerada, a começar pela possibilidade de prisão de pessoas - considerando que não há mais lugar no sistema prisional brasileiro e considerando que a cadeia não melhora ninguém, trata-se de uma medida problemática, para dizer o mínimo.

Tem-se a impressão de que o Brasil, como não é raro acontecer, foi do oito para o 80: não se fazia quase nada nessa área, agora quer-se fazer tudo, o que em algum momento exigirá uma correção de rumo.

Exageros à parte, contudo, devemos admitir que a medida era necessária. Prova-o a diminuição dos acidentes: uma queda de 20% na cidade de São Paulo, e isto apenas no segundo final de semana após a entrada em vigor da lei.

E prova-o também a surpreendente aprovação: 77% dos motoristas ouvidos por ZH estão de acordo com a medida (no Rio e em SP, esta porcentagem chega, de acordo com a Folha de S. Paulo, a 86%).

Finalmente, é preciso dizer que existem pessoas a quem a medida não incomoda e até dá certo conforto. É o caso daqueles que não dirigem. E é o caso daqueles que, como este que vos fala, são abstêmios.

Não bebo. Como é que vocês acham que digo esta frase, caros leitores? Com orgulho, com arrogância, em tom de desafio? Não.

Em geral, faço-o de maneira constrangida, quase em tom de desculpa, tão incorporada está a bebida alcoólica à nossa cultura. Tenho de explicar que essa atitude não resulta de motivos morais, ou religiosos, ou mesmo médicos, e que, não, em outras coisas não sou abstêmio.

Não bebo simplesmente porque nunca aprendi a beber, nunca treinei meu organismo para aceitar o álcool como um estímulo agradável, como tranqüilizante, como consolo.

Álcool, para mim - como para toda pessoa que bebe pela primeira vez - tem gosto desagradável. Posso brindar a um amigo com um pouco de vinho, e, ah, sim, e às vezes tomo Malzbier. Isto mesmo: Malzbier. Riam, podem rir.

Invejo as pessoas que conhecem vinhos, que são capazes de ficar comentando durante horas o sabor e o buquê de determinada marca, de determinada safra, usando adjetivos elegantes como "encorpado". Existe aí um componente de refinamento, de arte até, que é até digno de admiração.

Agora, os abstêmios estão vivendo um pequeno e modesto momento de glória. A menos que a gente coma bombom de licor (mas um verdadeiro abstêmio nem tocaria nisso), podemos dirigir sem maiores problemas, sem medo da polícia (e, se formos detidos numa barreira, podemos até fazer um pequeno pronunciamento sobre o assunto).

A aflição geral não nos atinge. E podemos até dar conselhos: experimentem suco de laranja. É saudável, é natural, tem vitamina C. E existem algumas safras fantásticas. Vocês vão gostar. É a glória.

Não percam - vou repetir: não percam - este excelente filme uruguaio que é O Banheiro do Papa. É a história de um sacoleiro que, por ocasião da visita do papa João Paulo II à cidade de Melo, no Uruguai, resolve construir um banheiro (pago) para os turistas.

Como vários outros, ele tem a esperança de faturar alguma grana; esperança que se revela, para todos, frustrada.

Estamos acostumados a falar dos vencedores, daqueles que lançam empreendimentos vitoriosos; mas temos de nos lembrar que a maioria da população latino-americana ainda é constituída de gente desamparada, que precisa ser ajudada.

Um detalhe curioso, no filme, é que a vinda dos brasileiros a Melo é aguardada com ansiedade, como se fôssemos os "hermanos ricos".

Massageia o nosso ego, mas, de novo, não devemos nos deixar iludir pela euforia. Mesmo porque a inflação também ronda nossa porta.

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