AMOR, SÓ SE FOR INCONDICIONAL
Nenhum tema fascina mais nem é capaz de despertar reações tão imprevisíveis de admiração, inveja, preconceito, espanto, humilhação, ódio, veneração, euforia, delírio, estupor, idolatria, submissão e loucura.
Cada um ama do seu jeito, e a maior bobagem é aconselhar alguém a como proceder ao bater de frente com ele. Então, nunca digas que o amor é cego, só porque ele te cega.
Como ocorre com todos os sentimentos complexos, sempre estamos disponíveis para dizer o que julgamos adequado em cada situação, completamente relaxados na nossa condição de juízes afetivamente descomprometidos. Numa espécie de punição dos deuses que mistura ironia com deboche e castigo, nem nos reconhecemos quando caímos na teia, sempre de tocaia, que o amor verdadeiro não se anuncia.
A literatura está cheia de amores que se excederam, perderam a noção do ridículo ou, para mostrar que o amor transcende a razão, quando perceberam que não havia como viver sem ele anteciparam o fim.
A história que inspirou esta crônica é verídica e foi contada pelo professor Silvano Raia, um grande mestre da cirurgia brasileira, responsável pela formação de centenas de cirurgiões, de todas as idades, que estufam o peito para anunciar quem os treinou.
Silvano estava no sexto ano do curso médico, quando era interno do Hospital das Clinicas, em São Paulo. Num plantão noturno, os doutorandos, em ordem alfabética, recebiam os pacientes admitidos em ordem de chegada. Foi assim que ele teve o azar de receber um menino pequeno, sangrando bastante com um ferimento na língua. Não bastasse a enorme dificuldade de conter o capetinha, que gritava, esperneava e mordia os dedos do cirurgião, ainda teve de acompanhar a paciente destinada a sua colega, vizinha de box, futura ginecologista, que recebera o caso dos sonhos para um projeto ambicioso de cirurgião, porque todos os grandes no futuro nunca tiveram dúvidas de que o seriam.
Tratava-se de uma mulher jovem e bonita, que fora agredida com uma navalhada, causando um longo corte superficial nas costas, do ombro direito até a região ilíaca esquerda. Aquele tipo de lesão, pela maior exigência técnica, sempre parecerá mais desafiadora a um aprendiz. Triste com a tarefa que lhe coubera de suturar a língua da criança rebelde, observava invejoso sua colega que atendia a jovem morena na mesa de mármore ao lado, a dois metros de distância. Assim, não pôde evitar de ouvir o diálogo que se estabeleceu entre ambas: "Minha filha, quem foi que fez isso em você?".
" Ah, doutora, foi o meu homem, o Mexerica. A polícia está dando em cima do nosso trabalho na Avenida Paulista, a renda diminui, e ele fica furioso".
A doutora encheu o peito, e fez aos brados o seguinte discurso : "Que você se prostitua já é uma miséria. Pior ainda que você dê o resultado do seu trabalho ignóbil a um homem. Ainda mais para um FDP, que faz isso em você".
A paciente não respondeu. Passados alguns minutos, a doutora insistiu: "Então, você não diz nada?".
E para surpresa dele, da doutora e de todos os que puderam ouvir, a paciente respondeu: "Doutora, não adianta lhe explicar, a senhora não conhece o Mexerica!".
J.J. CAMARGO
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