02 DE OUTUBRO DE 2021
DAVID COIMBRA
Os domingos eram assim
A gente ouvia o som comprido e distante da corneta do sorveteiro e dava uma preguiça. Eram tardes quentes de domingo e não havia muito o que fazer, a cidade inteira parecia estar cochilando e quem se mantinha acordado evitava gestos bruscos.
Minha avó caprichara no almoço: massa feita em casa. Ela passava horas preparando. Primeiro misturava farinha, água, sal e ovos e transformava aquilo em uma pasta e ia amassando com as mãos e amassando e amassando, até que jogava o bolo numa mesa polvilhada com farinha de trigo e o comprimia com o rolo de madeira e passava o rolo para frente e para trás e fazia chover mais um punhado de farinha e passava o rolo outra vez e outra vez espalhava farinha. Quando a pasta virava uma lâmina dourada quase que do tamanho da mesa, ela tomava de uma ripa que lhe servia de régua e ia cortando os fios um a um com um estilete, pacientemente, todos com a mesma espessura e o mesmo comprimento.
Pronta a massa, minha avó se ocupava do molho. Vermelho. Sempre vermelho, que molho branco é uma fraude. Ela se concentrava naquele molho, acrescentava cada ingrediente com critério e mexia sem parar. Ao terminar, o que se via no fundo da panela de ferro não era molho, era creme. O queijo ela mesma ralava em cima do prato de cada um.
Nunca mais comi massa igual, nem na Itália, nem em Nova York, nem no alto da serra gaúcha.
Meu avô, é claro, bebia vinho tinto. E nós? Nós também! Para as crianças, vinho com água e açúcar, que os tempos eram menos vigilantes.
Não ficava só nisso, evidente que não. Havia ainda bifes dourados temperados com alho e sal e batatas feitas na manteiga e inclusive alguma salada. De sobremesa, as compotas que a minha avó tinha adrede preparado, doce de abóbora e pêssego em calda ou sagu com nata.
Normal, tamanha fartura. Em casas de famílias de imigrantes, a mesa havia de ser opulenta, a fim de repelir as lembranças da fome pela qual passaram os ancestrais que chegaram ao Brasil.
Mais tarde, na hora do futebol, a cidade já estava desperta. A voz veloz e os erres triplos dos locutores evaporavam dos radinhos de pilha e, de repente, um gol de 12 ós explodia por toda parte. Então, outro som típico vinha lá de onde viera o da corneta do sorveteiro: o claque-claque da matraca do vendedor de casquinha. Que instrumento especial era aquele! Por que só o vendedor de casquinha o usava? Ainda existe? Não sei, só sei que, se já havíamos perdido o sorveteiro, o vendedor de casquinha não deixaríamos passar incólume. Corríamos para o vô e arrancávamos dele uma nota grandona e azul e em um minuto estávamos saltitando em volta das casquinhas fininhas da cor da cuia.
Ao voltarmos para casa, antes do café da tarde, que seria servido debaixo da parreira, a madrinha surgia do fundo do pátio com a proposta: - Que tal um banho de mangueira? Aí era uma farra.
Por que é que, depois do banho de mangueira, a mãe nos botava no banho de chuveiro, isso é algo que nunca entendi.
O dia já ia terminando e a vó anunciava que, para a janta, havia preparado moranga com linguiça, eu adorava moranga com linguiça. À noite, tudo ficava mais calmo e a gente podia ouvir os grilos cantando do outro lado da rua. Eu dizia para a minha irmã que estava preocupado: as férias se aproximavam do fim. Então, a madrinha pegava da gaita e nós pedíamos:
- Toca Al Di La! Ela tocava e nós silenciávamos para ouvir. Os domingos eram assim.
Texto originalmente publicado na edição de 18 e 19 de novembro de 2017
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