sexta-feira, 20 de março de 2009


BARBARA GANCIA

Não se fazem mais machos como Clodovil

Com o estilista talvez tenha morrido também o estereótipo do gay maldoso, folclórico e efeminado

NUNCA IMAGINEI que fosse reunir os nomes de Contardo Calligaris e Clodovil em um mesmo texto, mas a vida quis que, no dia do enterro do costureiro transformado em apresentador e deputado, eu atendesse ao gentil convite do colunista e psicanalista para assistir à sua estreia como dramaturgo, em "O Homem da Tarja Preta", um monólogo interpretado pelo ator baiano Ricardo Bittencourt no qual Contardo derruba a tiros de canhão os estereótipos sobre a libido masculina.

Não é uma peça fácil para os homens. O personagem de Bittencourt é dono de uma identidade sexual ambígua e isso parece deixar os machos na plateia um tanto alvoroçados.

O sujeito ao meu lado, por exemplo, ficou tão tenso com o que acontecia no palco que passou o tempo todo embrulhando furiosamente um papel de bala barulhento. Pensei muito em Clodovil durante a peça e em como ele teria reagido à desconstrução do papel do macho efetuada por Calligaris.

Conhecia Clô a vida inteira e, para mim, ele fazia o tipo machão de quebrar o bar inteiro. Explico: quando eu tinha lá os meus 11, 12 anos, mr. Hernandes morava a dois quarteirões da minha casa, mais precisamente na esquina das ruas Oliveira Pimentel e Henrique Martins, no Jardim Paulista.

O cruzamento dessas ruas era palco diário de trombadas de automóvel. E, toda vez que havia uma colisão, ele saía na rua, quase sempre de robe de chambre, para esculachar os motoristas.

A vizinhança inteira conhecia o expediente e todo mundo morria de medo dele. Mas não eu ou os meus amigos. As batidas eram tão constantes que, quando não tínhamos nada melhor para fazer, nós estacionávamos a bicicleta na calçada e ficávamos lá sentados esperando para ver o próximo show de Clodovil.

Devo ter assistido de camarote a uma meia dúzia de pitis, que terminavam sempre com a nossa salva de palmas e com o estilista nos colocando para correr.

Hoje, a gente sabe que não existem apenas héteros, gays e "inativos" e que a sexualidade humana apresenta uma variedade bem maior do que todos os modelos das coleções criadas por Clodovil reunidos. Mas, naquela época, era preciso ter peito para se expor como ele. Pois veja como são as coisas.

Embora não hesitasse em se apresentar como homossexual, Clodovil não lidou bem com o fato de ser gay. Nos últimos tempos, dizia que, dada a escolha, ele teria optado por "nascer homem", como se tivesse nascido, sei lá eu, petúnia ou beterraba.

Líder do movimento gay no Brasil, o excelente Luiz Mott afirmou que Clodovil "foi um gay alienado, exibicionista e que desperdiçou sua inteligência e sua audácia em favor de um projeto de vida furado, completamente ultrapassado e elitista". Longe de mim contestar o projeto de vida de quem quer que seja.

Acho que Mott foi muito duro com Clô ao tecer esse julgamento.

Mas concordo que, com o estilista talvez tenha morrido também aquele estereótipo do gay maldoso, folclórico e efeminado de outros tempos. O do homem que sofreu tanto na infância por ser "diferente" que passou o resto da vida descontando nos outros.

Como antídoto contra esse destino trágico, pela graça de Deus hoje existem peças como "O Homem da Tarja Preta", de Contardo Calligaris.

barbara@uol.com.br

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