sábado, 21 de março de 2009



22 de março de 2009
N° 15915 - DAVID COIMBRA


O leão desdentado e a velha deusa

Noite dessas, ria e bebia com os amigos numa mesa de bar e um deles, o Ivan PM, apontou para uma senhora que passava ali adiante. Ciciou, o Ivan, em meio a um suspiro extraído do último escaninho da alma:

– Aquela já foi uma mulher muito, muito linda...

Olhei. Era uma madame de carnes decaídas, olhos baços, ancas da largura de um pneu de jipe e, debaixo do queixo, uma lustrosa papada dupla. Franzi o cenho, tenho uma ruga na testa de tanto franzir o cenho:

– Não é possível. Aquela mulher nunca foi muito, muito linda.

Todos na mesa se ergueram em protesto – eles a haviam conhecido durante o horário nobre. Não conseguiam compreender como eu não via os resquícios da antiga beleza daquela que, para mim, não passava de uma matrona.

– Olha bem! – pediam. – Olha como ela ainda é bonita!

Olhei de novo. E, realmente, reconheci que se movimentava com uma passada orgulhosa que só uma mulher admirada pelos homens tem. Aquela senhora deve realmente ter sido objeto constante de desejo masculino.

Deve ter sido muito olhada – o olhar dos homens molda a personalidade de uma mulher. Para os meus amigos, ela continuava sendo aquela semideusa que, ao entrar num ambiente, fazia baixar o vozerio. Eles ainda a admiravam e, mais, ainda a cobiçavam.

É a força de uma imagem formada. Depois que as pessoas se acostumam a ver alguém de uma maneira, nem a realidade mais consistente é capaz de mudar essa imagem.

O leão do circo. O leão está velho, está desdentado, está cansado, mas ninguém vai lá mexer com ele, puxar as pontas quebradas da sua juba. Porque ele não deixou de ser o leão. Uma mulher que foi linda continua sendo linda em algum lugar, nem que seja na cabeça de certos homens. Ou na sua própria.

Assim os velhos craques. Ontem mesmo assisti com a esquina do olho a uma entrevista do Rivellino na TV. Para mim, o melhor depois de Pelé. Para Ronaldinho e Maradona, também. O Riva de hoje mantém o bigode que era sua marca registrada, mas dos cabelos cacheados há poucos sobreviventes e a barriga está mais ou menos do tamanho da dama que encantava os meus amigos.

Pois esse Riva de agora, sessentão, pesado, pouco afeito a atividades físicas que não sejam de cama e mesa, esse Riva entrou em campo semanas atrás, num desses jogos festivos de verão.

Parei para ver.

Ele não se movimentava muito, evidentemente. Caminhava pelas cercanias da intermediária de ataque, a bola chegava nele e ele a devolvia de pronto, com um tapinha seco, quase sempre lateral, sem maiores pretensões. Eu, diante da TV aqui da Redação, bradava para os meus colegas:

– O Riva, cara! O Riva! Olhem o Riva! Eles se encaravam. Sorriam com condescendência. – Para, David!

Não me conformava com a indiferença deles. Ali estava Roberto Rivellino em campo, o Garoto do Parque, o Patada Atômica, o melhor de todos, e aqueles seres ignorantes não entendiam a grandeza do momento.

– Pérolas aos porcos! – eu reclamava. – Pérolas aos porcos!

Eles balançavam a cabeça e faziam tsc tsc. Rivellino seguia andando a passo, como se estivesse passeando no shopping, para meu desespero. Jogaria uns poucos minutos mais, já estava quase saindo de campo, e nada acontecia.

Até que, num movimento de ataque, ele recebeu a bola perto da meia-lua. Dominou-a com a chuteira esquerda número 37. A defesa adversária fechava a área como se fosse um pelotão da Brigada Militar. Não havia o que fazer.

Imaginei que o Riva recuaria a bola ou daria outro passe lateral. Mas aí ele firmou o corpo na perna direita e, com a parte de fora do pé esquerdo, enviou um passe sutil, rente à grama, por uma brecha até então invisível na zaga inimiga. A bola caiu no pé de um atacante perplexo, tão perplexo que perdeu o gol. Virei-me para os meus colegas. Sorri, vitorioso. Eles:

– Ooooh... Um leão nunca deixa de ser um leão.

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