segunda-feira, 30 de março de 2009



30 de março de 2009
N° 15923 - PAULO SANT’ANA


A aviãoterapia

Um dos mais respeitados médicos gaúchos analisa a ambulancioterapia. A palavra com o doutor Fernando Lucchese: “Como sei que aprecias a verdade e o contraponto, resolvi escrever-te sobre a ambulancioterapia.

Ao ler as matérias de ZH, imaginei que estariam muito apropriadas se tivessem sido publicadas há 10 anos, quando até pneumonias ou doenças de pele vinham desorganizadamente pelas ambulâncias a Porto Alegre. Hoje, não.

Conheço a situação da Santa Casa. As consultas agora são pré-agendadas pelo município de Porto Alegre e são geralmente especializadas. Se chegam a Porto Alegre diariamente 4 mil pessoas do Interior através de ambulâncias e micro-ônibus, e sendo uma parte deste número constituída de acompanhantes, não me parece inadequado ou surpreendente diante das 27 mil consultas especializadas realizadas no Interior.

As placas de ambulâncias que chegam à Santa Casa também mudaram ao longo do tempo. Antes, tínhamos o mapa do Rio Grande. Hoje, a maioria vem dos municípios mais próximos, para os quais Porto Alegre é a referência.

Existem vários motivos para isso. Primeiro, a excelência e a concentração dos serviços médicos em Porto Alegre sempre atrairão casos mais complexos e sem solução em locais com menos recursos. Segundo, nos últimos 10 anos, os prefeitos se organizaram. Hoje, 100% dos municípios gaúchos têm suas próprias redes de atendimento, com seus postos de saúde e suas equipes de saúde da família que atendem milhões de gaúchos.

Mas é evidente que 400 dos 496 municípios gaúchos, tendo menos de 20 mil habitantes, não podem sustentar estruturas complexas de atendimento. Por isso se conectam aos polos regionais, municípios mais desenvolvidos que lhes dão suporte a consultas especializadas e internações.

E uma pequena parte, geralmente constituída de casos direcionados a especialidades, terminam na Capital. Por outro lado, a heterogeneidade na distribuição dos médicos e dos serviços vem se reduzindo. Hoje, por exemplo, todo município gaúcho de 20 mil ou mais habitantes dispõe de pelo menos um cardiologista bem treinado.

A heterogeneidade de distribuição e qualidade dos serviços médicos, além de outros serviços como rede de estradas, comunicação, é um problema nacional, sendo esta a característica dos países em desenvolvimento.

Aqui, no Hospital Santo Antônio da Santa Casa, operamos crianças com defeitos de coração provenientes do norte e nordeste do Brasil, trazidas de avião pelo SUS, pois lá ainda não existem centros especializados para este tipo de cirurgia. Seria a aviãoterapia?

Na minha opinião, Sant’Ana, eu, que era descrente no princípio, agora, 20 anos depois, acho que o SUS praticou um verdadeiro milagre no Brasil. Sempre limitada em seus recursos financeiros, a organização do sistema permitiu melhorar o atendimento à população brasileira, o que se comprova pela impressionante redução da mortalidade infantil e o aumento da longevidade brasileira nos últimos anos.

No Rio Grande, chegamos em janeiro deste ano a um dígito, ou seja, a menos de 10 mortes por mil nascimentos vivos, muito semelhante aos países do Primeiro Mundo.

Outros indicadores de sucesso: em 1987, 1,1 milhão de gaúchos foram hospitalizados; em 2008, apenas 715 mil. Em 1987, 60% dos leitos clínicos eram ocupados por crianças aqui no Rio Grande.

Agora, são menos de 3%. Isto explica em parte a grande crise que assola alguns hospitais do Interior. Melhoramos muito, mas é claro que ainda não estamos perfeitos. Mas para quem, como eu, achava que o SUS seria um caos, surpreende o fato de termos construído um dos melhores sistemas de transplantes do mundo e sermos um dos cinco países líderes em cirurgias cardíacas, com cerca de 100 mil procedimentos anuais.

O grande problema e o grande risco é o financiamento insuficiente do sistema de saúde, hoje próximo de R$ 50 bilhões, quando, segundo Adib Jatene, deveria ser mais do que o dobro para compensar o aumento da população e das exigências tecnológicas.

A prioridade sempre se afastou da saúde. Mas o dinheiro também não foi para as nossas estradas, inseguras e precárias. Por isso acontecem acidentes horríveis com ambulâncias repletas de pacientes, o que motivou a série muito apropriada de reportagens da Zero Hora. Um abraço do teu amigo,

(ass.) Dr. Fernando Lucchese, diretor médico do Hospital São Francisco de Cardiologia da Santa Casa”.

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