segunda-feira, 23 de março de 2009



23 de março de 2009
N° 15916 - LIBERATO VIEIRA DA CUNHA


As águas de março

Abri a janela e entrevi o mundo através das águas de março. São Pedro devia ter descerrado as comportas do céu, e uma chuva torrencial, estranhamente parelha, se despejava sobre a paisagem. Um inesperado bem-estar tomou conta de minha mente e de meu coração.

Tenho lido que as mudanças de estação provocam um gênero de ligeira melancolia, quando ao calor sobrevém sem aviso uma espécie mais civilizada de clima. Mas o outono só chega ali por 21 deste mês de março e provavelmente o que enviava naquela manhã era uma espécie de cartão de visitas, assim como quem fala: atravessaste longos meses de primavera e de verão. Não temas: aí vem o outono.

Aprendi a gostar do outono nos versos de Verlaine, aqueles mesmos que foram a senha para o Dia D, na Hora H da invasão da Normandia, durante a Segunda Guerra. Mas captei melhor sua essência ao percorrer as páginas de Fala, Amendoeira, naquele trecho em que Carlos Drummond de Andrade diz: “Repara que o outono é mais estação da alma que da natureza”.

Drummond entendia de outonos. Eu de outonos compreendo que são uma esquina da minha vida. Me aconteceram coisas tristes em verões, outonos, primaveras. Mas raramente em outonos, que, como quer Drummond, é mais estação da alma.

Sou equipado de um tipo de alma outonal. Isso nada tem a ver com a idade, pois que a minha vou sustentando bem.

Tem a ver sim com semitons, súbitos silêncios, vagos devaneios, secretos pulsares do coração.

Agora, por exemplo, parou a chuva. Um sol intenso apareceu entre as nuvens. As folhas verdes deste parque com que vizinho se aquietaram.

Um pássaro desconhecido cantou uma canção sem nome. Uma bela mulher atravessou a rua e desapareceu de meu campo de visão.

É assim com as águas de março. Chegam e partem feito uma dessas paixões repentinas que dizem adeus sem deixar endereço.

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