segunda-feira, 30 de março de 2009



30 de março de 2009
N° 15923 - LUIS FERNANDO VERISSIMO


Descompassos

Durante muitos anos, ir ao Radio City Music Hall, no Rockefeller Center, era programa obrigatório para quem visitava Nova York. Nada representava melhor tudo que fascinava naquela cidade, começando pelo tamanho estonteante do auditório onde a qualquer hora do dia você podia assistir a um filme e em seguida a um show de variedades no palco imenso.

O show sempre terminava com uma apresentação das Rockettes, um corpo de bailarinas do mesmo tamanho e formato cuja dança sincronizada era a apoteose do programa – e, se você fosse dado a sociologia rápida, uma espécie de apoteose do talento americano para embasbacar o mundo.

Em espetáculo e eficiência, ninguém os igualava. No Radio City Music Hall você estava no centro da autossatisfação americana. A impecável ordem unida das Rockettes simbolizava o triunfo de uma civilização homogênea e de passo certo.

Não sei se o Music Hall chegou a ser fechado, mas entrou em declínio e passou a ser usado apenas para eventos especiais, como shows de megaestrelas, convenções e assembleias religiosas.

Na última vez que entrei lá, há anos, foi para ver uma cópia restaurada do filme silencioso Napoleão, de Abel Gance, com sua projeção em três telas acompanhada por uma orquestra regida por Carmine Coppola. Acho que foi o último filme mostrado no Music Hall. Parece que as Rockettes ainda existem e se apresentam esporadicamente, em shows tradicionais como os de Páscoa e Natal, que relembram os bons tempos.

Mas quando passei por Nova York, há dias, a marquise do Music Hall anunciava um debate político entre Bill Maher e Ann Coulter.

Maher é um comediante que comanda um programa de discussão política na TV e é de esquerda, ou o que passa por esquerda nos Estados Unidos, e Coulter, apesar da sua aparência Barbie Dollesca, é tudo menos uma loira burra, sendo hoje a mais corrosiva voz da direita americana.

Os dois, imagino, falariam sobre Obama e o socorro a Wall Street, entre outros tópicos em que discordam por completo, e se atacariam mutuamente, e o mais extraordinário disto era a presunção de que o duelo teria público para encher o cavernoso Music Hall, com a plateia presumivelmente dividida entre “liberais” e conservadores vociferantes.

Foi um longo caminho entre as Rockettes de passo certo e os descompassos na opinião política transformados em showbiz, durante o qual alguma coisa aconteceu no coração americano. Nada na discussão entre Bill Maher e Ann Coulter lembraria o tempo das Rockettes – a não ser que os dois começassem a trocar pontapés sincronizados, claro.

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