quinta-feira, 18 de abril de 2024


18 DE ABRIL DE 2024
CARPINEJAR

Maquiagem da casa

Minha esposa estranhou que eu estava lavando louça, depois estranhou que eu estava lavando roupa, depois estranhou que eu recolhia nossas peças pelo quarto, depois estranhou que eu varria os farelos do chão da cozinha.

Ela veio me alertar: - Por que está arrumando tudo se a faxineira vem amanhã? Eu respondi: - Justamente por isso. Estou organizando a casa para a faxina. Estou arrumando a casa para a faxineira chegar, para não me envergonhar diante dela.

Empreendo sempre uma pré-faxina. Tenho medo do que a faxineira pensará de mim. Vá que diga que aquele escritor é um porco, que o nosso lar é uma pocilga, que a pia tem louça parada há séculos, com todos os copos, pratos e panelas usados, que a cueca fica presa na calça, que eu largo os casacos pelo chão, que espalho xícaras com restos de café pelos cômodos, que o lixo transborda de papel.

A faxineira conhece os nossos podres. Que, pelo menos, não sejam tão horripilantes assim. Tenho pena dela e de mim, numa compaixão misturada. Dedico a véspera de sua vinda para passar a limpo o meu rascunho e possibilitar que ela entenda a minha letra. 

Eu deixo a casa minimamente bagunçada, controladamente desorganizada, como se fosse um leve caos de ontem, não o apocalipse de uma semana inteira. Ajeito a aparência tentando evitar a profundeza química dos detergentes. Não é mais um terreno baldio, não é mais um território fantasma. Dá para localizar as chaves, o celular, a cabeça. Não vejo como um trabalho inútil, um esforço em vão.

Só não quero assustar a faxineira. Sabe como é difícil encontrar uma boa faxineira hoje. Eu me torno seu assistente. Se ela já reclama do serviço pesado, não tem noção do que escapou de presenciar. Aparo o ambiente, rearranjo o inferno. Meu gesto representa uma pertinente redução de danos. Além de preservar a minha imagem, não ofereço motivos para aumento da diária sob alegação de insalubridade.

Às vezes, exagero, invento de organizar demais, sou tomado pela serotonina, pela endorfina e pela dopamina do exercício físico e não sei parar o que iniciei. Eu me excito com a transformação milagrosa do cenário e encero o chão, e limpo as vidraças, e passo as camisas. Daí entro em dúvida sobre adiar ou não a faxineira. Não sobra muita coisa para ela.

Mas não tenho como correr esse risco: se eu a dispensar uma vez, ela pode ocupar o meu dia fixo com uma nova pessoa, e terei que suplicar pelo seu retorno como contratante suplente e esporádico. Faxineiras são extremamente disputadas.

Então, de noite, começo a bagunçar um pouco tudo o que ordenei, ocultando a minha performance higiênica, despistando a assepsia do lugar com um toque de baderna. Assim ela não irá reclamar também da falta do que fazer.

CARPINEJAR

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