Os pêssegos em calda sempre foram um doce sério
Eles fizeram parte dos almoços de família sempre que a minha mãe não estava inspirada para fazer a torta de bolacha dos domingos
O homem jovem, 40 e poucos anos, bonito, todo moderno em seus gostos culturais, sempre vestido com camisetas de bandas de rock – as mais clássicas ou as tão obscuras que só ele e mais meia dúzia de aficionados conhecem –, chegou ao churrasco dos amigos levando uma lata de pêssegos em calda e outra de creme de leite.
Pêssegos em calda com creme de leite.
Os convidados mais novinhos, muito provavelmente, jamais tinham visto uma lata daquelas fora das prateleiras do supermercado. E quase dá para apostar que nenhum havia parado no corredor das caldas de pêssegos, abacaxis, figos, goiabas, abóboras.
Que fique claro: não estou falando mal dos pêssegos em calda. Eles fizeram parte dos almoços de família sempre que a minha mãe não estava inspirada para fazer a torta de bolacha dos domingos. Mas então éramos crianças e os pêssegos em calda sempre foram um doce sério, não tinham o mesmo encanto do pudim, outra sobremesa que ela fazia bem.
A lata de pêssegos em calda me lembrou de outras coisas que eram parte da vida das famílias e que hoje amargam o ostracismo. Novamente: não que o pêssego em calda esteja arquivado, fabricantes e apreciadores, não me cancelem. Foi só que aquela lata me levou a uma viagem no tempo, e de repente me vi na casa dos meus pais, com tantos e diversos caprichos hoje desaparecidos.
A roupinha xadrez do liquidificador, que combinava com a roupinha do botijão de gás. O Fabrício Carpinejar escreveu que as famílias se transformaram na hora em que a mãe parou de vestir o botijão de gás.
Os conjuntinhos de privada. Uma capa sempre meio peluda que cobria a tampa do vaso sanitário e fazia par com o tapetinho peludo que tornava o ato de sentar ali mais reconfortante. O tal do conjuntinho acabava ficando meio nojento pela água que pingava da descarga e pela sua própria natureza, e de vez em quando era substituído por outro. O cheiro era o de um cachorro molhado eternamente deitado no banheiro.
O abajur de uísque. Esses dias vi um filme da diretora Lucia Murat sobre o golpe de 1964 e lá estava, na casa de uma das entrevistadas, o abajur de uísque JB, um clássico dos anos 1970. Quem não teve um não viveu um capítulo marcante da decoração da casa brasileira.
A TV ligada no programa Sílvio Santos da manhã até a noite. Tudo o que acontecia no domingo era em função do Programa Silvio Santos. Almoço na hora do Qual é a Música? – duas notas, Maestro Zezinho –, banho quando entrava algum quadro chato de competição entre estudantes, janta na mesa tão logo começava o Show de Calouros. Ninguém precisava de relógio no domingo, qualquer criança sabia que ia para a cama quando o Quem Quer Dinheiro? acabasse.
Depois, bem depois, veio o Fantástico e a terrível sensação de fim do mundo com aquela musiquinha da abertura anunciando que o domingo já era.
Para encurtar o caso, o churrasco dos amigos chegou ao fim, e a lata de pêssegos em calda se ofereceu para quem quisesse desbravar sabores de outros Carnavais. O creme de leite se mistura com a calda e ameniza a doçura, disse o homem da camiseta de banda, expert no assunto. E todos gostaram e repetiram até limpar a lata.
No próximo encontro com seus pais, os jovens presentes certamente contarão que naquele domingo, ao som de phonk, trap, hyperpop ou outra dessas modernidades, experimentaram uma sobremesa diferente, pêssegos em calda. Eles já ouviram falar?
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