sexta-feira, 19 de abril de 2024

12/04/2024 - 09h00min
Martha Medeiros

Não há como não absolver o espírito de porco

O mundo seria um lugar melhor se, em vez de abusar de sua acidez e inconveniência, ele usasse armas mais eficazes contra a alienação 


As redes sociais estão lotadas de oba-oba, na contramão das dificuldades que tanta gente passa.Gilmar Fraga / Agencia RBS

Estava perambulando pelas redes, quando encontrei uma postagem no Instagram, a exemplo de tantas outras, mostrando uma seleção de fotos de diversas mulheres 60+ que continuam charmosas, interessantes e seguras com sua aparência. Resolvi dar uma olhada nos comentários. Muitos emojis de aplausos, carinhas com corações no lugar dos olhos e os invariáveis “Musas!”, “Divas!”, etc., etc., até que alguém largou esta: “O que o bisturi e o dinheiro não conseguem, não é mesmo?”. 

Outra postagem: a foto de uma rua arborizada e florida, que estava sendo homenageada por seus moradores num sábado de sol. Eles estavam orgulhosos por ajudar a preservar árvores muito antigas. Entre vários comentários incentivadores, destacava-se este primor de elegância: “Aqui no meu bairro tem uma dúzia de ruas mais bonitas que esta”. 

Não é a reação típica de um hater. Não há ódio explícito no comentário, nem ofensa direta. Aliás, ninguém contesta: o dinheiro compra mesmo procedimentos estéticos, cremes, maquiagem, matrículas na academia. Assim como é verdade, também, que há milhares de ruas exuberantes pelo país. As reações, portanto, não vinham de um mentiroso, nem de uma pessoa bruta. Vinham de um ressentido. Um estraga-prazer. É o que se chama “espírito de porco”, uma expressão idiomática que se aproveita da má fama que o porco tem em relação à limpeza. 

A pessoa com espírito de porco quer apenas tumultuar a diversão alheia, quebrar a boa atmosfera, dar uma achincalhada, a fim de abalar a higienização do assunto. Em sua defesa, ele dirá que está em combate contra a alienação. 

De certa forma, dá para entender. A vida não está fácil para quase ninguém. As redes sociais estão lotadas de oba-oba, na contramão das dificuldades que tanta gente passa. Ao fim de um dia difícil, muitos precisam extravasar sua raiva e cansaço, e soltar uma maledicência direcionada aos “felizes” não parece grave, é até um favor para a humanidade, um antagonismo brando se comparado à vontade de estrangular dois ou três. 

Apresentados os atenuantes, não há como não absolver o espírito de porco. No entanto, o mundo seria um lugar melhor se, em vez de abusar de sua acidez e inconveniência, ele usasse armas mais eficazes contra a alienação. Na mesma tropa de combatentes, há quem incentive a leitura, compartilhe conteúdo de qualidade, denuncie fake news e injustiças, debata ideias – tudo dentro da mesma intenção: acordar quem está em sono induzido. 

Ser desagradável não desperta ninguém. Serve para coisa nenhuma. É só uma poça de lama da qual a gente desvia. O máximo que o espírito de porco consegue é um olhar compassivo e uma interjeição: “coitado”. 

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