sábado, 6 de abril de 2024


06 DE ABRIL DE 2024
RANCISCO MARSHALL

DESMEMÓRIA

Embora aplique-se perfeitamente a muitos casos romanos e também egípcios, sumérios e gregos, o termo damnatio memoriae é invenção moderna, cunhado em 1689, em uma dissertação tedesca; significa condenação da memória e indica a remoção de nomes e imagens de referências oficiais, com a raspagem de monumentos ou retoques em pinturas e fotografias. 

O caso mais célebre é o do tondo (pintura em painel circular) da família Severo, em que aparecem os quatro membros desta família imperial romana, todos com trajes suntuosos, coroas e cetros: na parte superior, o imperador, Septímio, ladeado pela esposa, Julia Domna, sobre os retratos dos dois filhos do casal, Geta e Caracalla, um dos quais com o rosto removido por raspagem. Pintado em têmpera sobre madeira em Fayum, no Egito, e datado de c. 200 d.C., o retrato hoje está em Berlim. 

O espaço do rosto removido foi besuntado com excrementos, sinal adicional da cólera dessa condenação. Provavelmente trata-se de Geta, cujo nome foi removido também de vários monumentos, após ser assassinado pela guarda petroriana do irmão Caracalla, nos braços de sua mãe Julia Domna, em 26 de dezembro de 211 d.C..

Eis poderosa ironia da história: essa remoção, como ocorre em casos similares, em vez de eliminar, termina por reforçar a memória e agravar o contexto, em favor da vítima e com denúncia e vergonha de quem ordenou a eliminação da memória. No Brasil, há o caso célebre da ordem para a queima de todos os registros cartoriais de compra e venda de escravos, assinada pelo então ministro da Fazenda, Ruy Barbosa, em 14 de dezembro de 1890, e consumada no Rio de Janeiro em 13 de maio de 1891. 

Essa nódoa na fama da Águia de Haia visava a dificultar ou impedir a reivindicação de indenizações por senhores e por escravos, e foi então denunciada como iconoclastia, com a destruição de documentos históricos preciosos. O caso mais pitoresco parece ser o da sistemática remoção de opositores em fotos da União Soviética, por Stalin. Os personagens deletados ganharam fama; cresceu a memória, quando esperava-se eliminá-la.

A história trata dos documentos e de sua interpretação consistente, ao passo que a memória tem teor mental e cultural, opera por imagens, oscila e estabelece pontos de referência e recuperação (Halbwachs, 1925). Quando conciliadas, história e memória podem ajustar mundos objetivos e subjetivos, criar identidades e consciências, promover a experiência no tempo e fomentar a sensatez no trato político. Eis o ponto em que o passado brasileiro ainda pede resgate, conhecimento e reparo. 

A memória reclama e a história exige que se rememorem e se evidenciem os horrores e autorias da ditadura, vividos de 1964 a 1985, e não haverá covardia oficial, contra este dever cívico, que possa suprimir a força e a verdade desse processo social. Nossa dívida histórica inclui a inaceitável impunidade de todos os delinquentes que cometeram crimes contra a humanidade, e os reparos às muitas vítimas, sobretudo a dignidade da pátria ainda ultrajada pela violência de golpistas e usurpadores. Ditadura nunca mais, estamos atentos.

FRANCISCO MARSHALL

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