Da água para o fogo: o dia da minha infância
Há cenas que jamais vão se repetir. Quem viveu, viveu. Quando partia para a escola, levantava os pés por onde passava.
As ruas, escadarias e a frente dos comércios eram lavadas pelos vizinhos com mangueira. Predominava uma coreografia coletiva de remadores das lajes. Cada um dava conta da sua porção de universo, do seu quadrado residencial. Movimentavam-se alinhados, devotos na tarefa de expiar os pecados dos pedestres antes do almoço.
Todo mundo limpava as calçadas de manhã cedo. Lavava-se a vida no primeiro gesto do dia. Recordo com nitidez o barulho, a vitrola do esfregão: tchum-tchum-tchum.
Eu tinha que cuidar para não escorregar, não deslizar, não cair e sujar o uniforme escolar. Ainda mais calçando a sola fina do tênis da época. Exigia malabarismo, equilíbrio percorrer os cinco quarteirões da casa à escola e escapar dos esguichos distraídos.
O piso escorregadio de alvejante, de sabão, poderia produzir tombos e vexames diante dos colegas em procissão. Enfrentava grandes riscos de me tornar motivo de gargalhada por alguns meses.
As entradas das casas transformavam-se em saboneteiras. Havia poças espumosas e passarinhos estourando bolhas de sabão. Amanhecia com o vapor subindo do chão, o perfume renovado das pedras e dos paralelepípedos.
Entre 7h e 9h, os moradores empunhavam o rodo e recolhiam a sujeira em busca do brilho, obcecados em repor o cinza do asseio do concreto. A correnteza seguia pelo meio-fio para ser engolida pela boca de lobo. Desapareciam pouco a pouco as freadas das bicicletas, as marcas duplas do rolimã, o jogo da amarelinha, nossas brincadeiras do ontem.
Era uma dinâmica que jamais vai se repetir hoje, devido ao controle geral contra o desperdício de água.
Se eu começava o dia com o bairro molhado, eu terminava o dia testemunhando o fogo. No fim da tarde, as mesmas pessoas regressavam ao batente doméstico. Abandonavam o observatório de suas varandas outra vez para varrer as calçadas, agora sem água, num arremate da faxina.
Juntavam as folhas em montinhos nas esquinas e ateavam fogo. Parte do lixo seco era incinerado. Trilhas de fumaça invadiam o céu, fatiavam o horizonte. Tanto que, até hoje, o pôr do sol para mim tem cheiro de queimado.
Mais um capítulo que jamais será reiterado na minha existência, em função do perigo atual de a chama se alastrar com as altas temperaturas do verão. Vejo que envelheci pelas recordações que nunca voltarão a acontecer. A infância, para ser antiga mesmo, precisa de lembranças extintas.
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