sábado, 30 de maio de 2020


30 DE MAIO DE 2020
JULIA DANTAS

A REALIDADE INVEROSSÍMIL

Certa vez, numa oficina de escrita criativa, uma professora propôs à turma um exercício que consistia em criar um mundo distópico. Um dos alunos entregou o seguinte texto: "Era uma vez um país de proporções continentais que, de uma semana para outra, se viu na rota de um vírus mortal. Não havia vacina nem tratamento, o líder da nação contava apenas com a vantagem de que outros países já tinham sido tomados pela doença antes, podendo oferecer bons e maus exemplos do controle das contaminações. 

Mas o líder não gostava de ciência. Sua estratégia consistia em divulgar um elixir encantado, dizer às pessoas que estava tudo bem e ignorar os mortos acumulados. Questionado sobre suas decisões, a resposta foi simples: debochar dos questionadores. Ninguém entendia quais eram seus objetivos, até que uma reunião a portas fechadas foi tornada pública, e ali o povo soube os projetos para o futuro do grande país. Assim que o vírus passasse, eles chamariam os jovens da nação para que construíssem estradas, chamariam esses jovens de aprendizes, pagariam a eles uma esmola e ensinariam a todos o hino nacional".

A professora disse ao aluno que entendia a proposta do texto, o objetivo de mostrar a desconexão de um líder com a realidade. Mas advertiu que os personagens estavam pouco convincentes. Mesmo os vilões de uma história precisam de complexidade, não podem ser assim tão planos ou o leitor não acreditará neles. Até mesmo Hitler tinha contradições em sua personalidade, vide o desejo, na juventude, de se tornar artista.

A professora perguntou ao aluno qual era a história prévia do personagem líder. Ele disse que era um sujeito que tinha sido expulso da organização militar de seu país, que tinha sido um político irrelevante que se aproveitava de sua irrelevância para exaltar bandidos, empregar bandidos, homenagear bandidos com medalhas, e que depois se tornou famoso por fazer piada com estupro. A professora observou o aluno e tentou ser gentil: "Assim não vai funcionar", ela disse, "fica muito caricato e, além disso, inverossímil, um sujeito desses nunca chegaria à Presidência de lugar nenhum".

Esse causo de oficina é fictício, claro. Nada mais que um exercício de imaginação, coisa que falta a esse governo: a capacidade de imaginar um projeto de país que vá além da exploração da pobreza e do medo. Em vez de desenhar planos para colocar jovens em trabalhos pesados com remuneração irrisória, nossos líderes deveriam imaginar um futuro no qual as pessoas que constroem estradas e realizam serviços essenciais poderiam - sei lá, vou sonhar alto - receber treinamento adequado, salários suficientes para sustento de uma família e garantias de segurança. A gente podia até inventar um nome para essa relação de trabalho, talvez uma palavra assim tipo emprego. Mas acho que agora já entrei no terreno das utopias.

JULIA DANTAS

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