30 DE MAIO DE 2020
DAVID COIMBRA
Como tirar um hipopótamo do pântano
Uma vez, o Mago de Riga viu-se metido em uma séria dificuldade. Então, ele pensou no hipopótamo.
Engraçado alguém pensar em um hipopótamo quando está com problemas, mas foi o que aconteceu.
O Mago de Riga era Mikhail Tal, Grande Mestre de xadrez da Letônia, na época da União Soviética. Um gênio. Coisa assim de Michelangelo, de Leonardo. Aprendeu a ler sozinho aos três anos de idade. Aos oito, já humilhava marmanjões nos tabuleiros. E o melhor: ao contrário de outro gigante do xadrez, Bobby Fischer, era afável e gentil com as pessoas.
Mas não quando mexia os peões. Ao contrário, Mikhail Tal tinha um estilo de jogo surpreendente e agressivo. Fazia sacrifícios de peças importantes, que desorientavam seus adversários e levavam as partidas para finais inesperados, em que ele sempre vencia.
Se você já jogou xadrez sabe como esse jogo pode ser violento. Nos tempos do IAPI, isso já contei, mas conto de novo, pois, naquele tempo, a Biblioteca Romano Reif trouxe para jogar na vila um guri que era campeão de xadrez de algum lugar. Inscrevi-me para enfrentá-lo. Era um gordinho de aparência inofensiva, daqueles que pegam no gol na peladinha e levam cascudo no recreio. Isso até avançar o peão do rei para a casa quatro. A partir daí, ele se transformou. Silencioso, concentrado, olhar assassino, começou a movimentar aqueles cavalos, aqueles bispos, aquelas torres de um jeito feroz, que me deixou aturdido e acuado. Derrotou-me com a naturalidade de um Tyson surrando o Batatinha.
Tal fazia isso também, só que com Grandes Mestres. Foi invencível durante uma temporada e só não continuou amassando todos porque sua saúde era frágil. Tal sofria de problemas renais crônicos. E, na mão direita, faltavam-lhe dois dedos.
Muitos não sabem, mas é preciso condição física para jogar um bom xadrez. A concentração, o foco e o esforço mental são tão intensos que, às vezes, um jogador chega a perder cinco quilos durante um match decisivo. Tal, enfraquecido fisicamente, viu seu jogo enfraquecer também, e só por isso foi superado.
Mas, no dia em que pensou no hipopótamo, desfrutava o auge da carreira. O que se deu foi que, em meio a uma partida, o adversário colocou o Mago de Riga em uma posição complicada. Se fizesse o movimento errado, Tal perderia o jogo. Aí, sem motivo aparente, veio-lhe à memória uma antiga canção infantil soviética que dizia algo do tipo "como é difícil tirar um hipopótamo do pântano". Assim, em vez de pensar em adiantar a dama ou recuar o bispo, Tal começou a pensar em maneiras de tirar um hipopótamo de um pântano. Com um sistema de apoios? Com cordas? Com um helicóptero? O adversário esperando, a plateia esperando, todos achando que ele estava calculando os próximos lances, e Tal obcecado com o hipopótamo.
Até que ele chegou a uma conclusão. "Quer saber?", disse para si mesmo. "Deixa o hipopótamo se afogar. Se não há como salvá-lo, paciência. Que a natureza siga seu curso!"
Encontrada a resposta, o hipopótamo, puf, desapareceu da mente de Mikhail Tal e ele tomou uma decisão: "Vou sacrificar o cavalo". Foi o que fez. E ganhou o jogo.
Gosto dessa história, porque mostra que, às vezes, temos de fazer o que os chineses recomendam: seguir a favor da maré. Se um problema não tem solução, deixou de ser um problema. Já foi resolvido, não é preciso mais pensar nele. Isso, de certa forma, é um alívio. Libera o cérebro para se ocupar com outras pendências.
Agora, por exemplo, não adianta se afligir com um governo negacionista, que acredita que a pandemia é uma trama do comunismo internacional. Melhor esquecer as bizarrices que saem do Palácio do Planalto e se empenhar no combate ao vírus em cada Estado, em cada cidade, em cada casa. Melhor lidar com o corona como se fosse o cavalo de Mikhail Tal. E deixar que o hipopótamo de Brasília se afogue no pântano.
DAVID COIMBRA
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