sábado, 23 de maio de 2020



23 DE MAIO DE 2020
FRANCISCO MARSHALL

HISTÓRIA E POESIA

Certa feita, Aristóteles (384-322 a.C.) foi procurado por jovens atenienses que desejavam criar tragédias como os grandes mestres do século V a.C., Ésquilo, Sófocles e Eurípides. O filósofo deu-lhes então lições com seu método peripatético, caminhando e conversando por Atenas, explicando o fenômeno em sua natureza, propriedades, conceitos e finalidades. Formulou para aquele curso categorias fundamentais, como hamartia (ato falho) e catarse (purificação pelo êxtase), e, sobretudo, mimese (imitação). A tragédia é arte mimética, imita ações e a vida, e o faz para examinar questões importantes e resolvê-las em um ritual artístico depurador, muito benéfico para indivíduo e comunidade. Dessas aulas resultou a edição do primeiro e mais importante tratado de teoria da cultura, a Poética.

No capítulo IX da Poética, Aristóteles compara história e poesia. A história trata das coisas acontecidas (tá genómena), ao passo que a poesia trata do que poderia ter acontecido (hoia an génoito, no modo verbal optativo, que o grego usa para indicar possibilidade). Ademais, a poesia não vem da métrica dos versos, pois se a obra de Heródoto fosse escrita em verso, não deixaria de ser história. A poesia, afirma Aristóteles, é mais filosófica e mais elevada que a história, pois se atém ao universal, e a história, ao particular. E arremata: "É universal o que tal tipo de homens diz ou faz em tais circunstâncias, segundo o verossímil ou o necessário" (katà tò eikòs è tò anankaion). Particular é o que fez Alcibíades. Universal, o que ele poderia ter feito, em dadas circunstâncias.

Quentin Tarantino gosta de jogar com as relações entre história e poesia, ao tomar fatos históricos conhecidos e recontá-los com outro final, positivo, estendendo, no afeto e na fantasia de um bom filme, o poder da poesia sobre o destino da história. É o que vemos em Bastardos Inglórios (2009) e Era uma Vez em Hollywood (2019), em que o final da Segunda Guerra Mundial e a morte de Sharon Tate são recontados com desenlaces que produziriam alívio para todos. Abre-se a reflexão: e se fosse diferente? Como poderia ser?

A História não é hipotética, pois trata do que ocorreu, e são fatos particulares, como o texto acima comentado, do estagirita, ou a cidade em que nasceu, Estágira, colônia grega na Macedônia, mas cada ato guarda uma potência que o transmite para imaginações onde reinam a poesia, a filosofia e outra dimensão da história, ética e especulativa. Foi o que pensou Tucídides (460-400), o historiador, ao declarar que escrevia sobre a guerra legando um "tesouro para a eternidade", para quem quiser examinar com clareza o que aconteceu, e pode ocorrer novamente, de modo igual ou semelhante, conforme a natureza humana.

Ora estamos em meio a uma tragédia, global e brasileira, um vírus letal agravado por ignorâncias ainda piores. Diante do vírus e da história, cada erro é fatal. Não há poesia em uma montanha de corpos que há pouco respiravam, e não haverá história se desdenharmos a ciência ou repetirmos, hoje ou amanhã, os erros do passado.

FRANCISCO MARSHALL

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