16 DE MAIO DE 2020
INFÂNCIA
PSICANÁLISE INFANTIL NOS TEMPOS DE CÓLERA
A ANÁLISE TEM, ENTRE SEUS ALICERCES, A VALORIZAÇÃO DE UM ENCONTRO VERDADEIRO. COM A PANDEMIA, MUITO MUDOU. AS SURPRESAS POSITIVAS NÃO VÊM SENDO POUCAS
Se havia reservas para o atendimento online em psicanálise para adultos, realizá-lo com crianças parecia uma heresia. A análise tem, entre seus alicerces, a valorização de um encontro verdadeiro, com a confirmação e o resgaste daquilo que sobrou e faltou nos encontros fundadores, como a prosódia de uma voz e o calor de um olhar. Ou um toque, ainda que este, no presente, seja feito com palavras e descobertas. Se, para adultos, o atendimento à distância entrava na ordem do inevitável, para crianças, parecia melhor evitá-lo.
Com a pandemia e o isolamento social, muito mudou. Mergulhamos nesta tentativa, sem um corpo teórico para nos sustentar. Mas as surpresas positivas não vem sendo poucas, sobretudo com crianças nem tão pequenas. Elas podem continuar se analisando e se mostram (mais que seus analistas) à vontade com as plataformas. Não raro, venho sendo contido e orientado por algumas delas. Ao me ver em dificuldades com um desenho na tela, uma chegou a dizer que eu não precisava passar por aquele trabalho, pois, no WhatsApp, podia ampliar a imagem.
Outro aspecto paradoxal e importante da nova modalidade foi a oportunidade de as crianças poderem adentrar, realmente, a casa do seu analista, nem que de forma virtual. Outra, por exemplo, comentou:
- Eu sabia, eu sabia que tinhas um cachorro!
Referia-se a tantas perguntas sem resposta que fizera, como é comum neste trabalho. Outra criança chegou a zoar daquele que tanto havia restringido o seu acesso ao computador, no aqui e agora das sessões, pois, nos encontros virtuais, éramos salvos justamente pela máquina tão evitada.
Já não é possível manter-se abstinente, e muitas crianças, através dos sons e das imagens, vêm sendo saciadas em suas curiosidades naturais e saudáveis sobre a vida de seus analistas, o que costuma evocar o interesse bem-vindo pela história de seus pais. Neste sentido, a falta de referências teóricas foi benéfica, solicitando improvisos e adaptações (criatividade) a uma realidade inóspita, objetivos constantes de uma análise, em qualquer idade.
A psicanálise foi concebida para ser in loco, especialmente na infância. Crianças se expressam com o corpo, são menos verbais do que adultos. Mas como fazer isto em um espaço ainda mais minguado do que o habitual? Chegava a hora de criar, inventar moda, mas criar e inventar moda é o desafio de toda saúde mental. A neurose costuma ser uma sinuca de bico, o melhor que se conseguiu para lidar com solicitações internas e exteriores. Compreendê-la, elaborá-la, simbolizá-la, dizê-la é o que permite sair do brete. E avançar. E expandir.
mais aptas à tecnologia do que estão os adultos
No caso das crianças, avultou outra questão essencial. Elas não existem sozinhas. Seus sintomas aparecem no contexto de uma interação com os pais e o ambiente. Conhecer essas relações é parte fundamental da construção. Como fazê-lo, em boas condições, quando desaparece a barreira geográfica das paredes e da porta chaveada?
Outro aspecto concerne à angústia destes pais e, como na imagem da canção de Erasmo Carlos, os pequenos são levados pela mão de gente grande. Observamos, então, nos menores, um incremento de medos e angústias, muito ligados aos seus progenitores. Manter o trabalho com a parentalidade torna-se ainda mais importante, já que mãe e pai são as fontes maiores de identificação, especialmente no momento em que modelos externos mostram-se frágeis ou até mesmo mortíferos.
A psicanálise, em qualquer idade, tem no pensar e no sentir seu objetivo fundamental. Varia tão somente a técnica, que, com os pequenos, utiliza a mediação de jogos, desenhos, brincadeiras. Mas as crianças estão habituadas ao uso das tecnologias, como veículo para o encontro, e também com representações de lobos, ogros, bruxas, para dizê-las. Trocá-los por um vírus vem sendo menos complicado para elas do que para os seus cuidadores.
O tratamento online parece, portanto, um desafio maior para os adultos. Ele demanda que estejamos ainda mais próximos do passado (a história dos pais) e do presente (as habilidades dos filhos) para contar com a liberdade de oferecer o que as crianças precisam, soltas ou confinadas: olhar, voz, atenção, limites para ir além. Espaço para brincar e compreender.
De resto, elas vêm se mostrando mais aptas do que os seus analistas para utilizar estas novas formas e representar o que precisam, nem que através da ficção. Na realidade, nós é que estamos aprendendo.
*Psicanalista e escritor, autor de "A Infância Através do Espelho" (Artmed, 2014) - CELSO GUTFREIND*
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